Saturday, March 15, 2008

FILO DI QUÍM?

- Dona Ména, bom dia!
- Bô-dia, como tá vai? Cuza querê? (Bom dia, como vai? Que quer você?)
- Bem obrigado, sou António, vim buscar a sua neta Cecília...
- António, qui bunitéza... Macau-filo? (António, que simpático... de Macau?)
- Sim, sou de Macau.
- Filo di quim?
- De Alberto Geraldes. A Cecília...
- Alberto filo di quim?
- Filho de Joaquim Caetaninho Geraldes.
- Caetaninho?... cunhecido.... Filo di Chano Geraldes?
- Não, Chano e Joaquim são filhos de Aquiliano de Sousa Geraldes.
- Aaaah... sábi-ia! (já sei!) Aquí-Lilí, genti di Apí-Mono, filo di Pé-Móle, sobrinho di Chica-Vara-Verdi! Genti di S. Lázaro, mé!
- Hmm... Pois...! A Cecília ...
- Mai sâm quim?! (quem é a sua mãe?)
- ...!

Podia continuar com o diálogo, mas julgo que ele é suficientemente ilustrativo, para aquilo que irei escrever.

A curiosidade de saber das origens de alguém que não conhecemos é comum a qualquer pessoa e corresponde a uma prática necessária e natural de qualquer comunidade. Muito especialmente, comunidades pequenas como a nossa, em que todos se conhecem, quer directa, quer indirectamente.

A este propósito, recordo-me dos saudosos tempos de Portugal, e em particular da primeira vez que fui passar o fim-de-semana à terra do meu colega, algures em Lamego. Segundo me explicou o Jorge, era sempre motivo de festa para a D. Gertrudes Conceição da Piedade, sua mãe, quando ele voltava à casa, pois haveria reunião de família e convívio com os amigos mais chegados. E, então, trazendo consigo um colega seu, o fim-de-semana foi um evento especial. O calor humano daquela casa, o trato com olhos nos olhos, o prazer de compartilhar o sentir enternecedor de família, traziam-me saudades tão grandes da Travessa do Paiva onde cresci e dos chás-gordos que a Família Espírito Santo todos os anos preparava no seu casarão, à Rua da Horta e Companhia, no tardoz das Ruínas de S. Paulo.

A hospitalidade e a generosa comida marcaram pontos na minha memória. Mas, o que particularmente me deleitou, foi apreciar o Jorge a explicar a sua proveniência, nas várias conversas que ia tendo com a boa gente da aldeia que íamos encontrando pelo caminho. Foi uma festa quando se soube que era filho do “inesquecível” cabo Piedade, pois daí começaram as pitorescas histórias em torno do falecido militar, estendendo-se a outros parentes que entretanto casaram-se com outros conhecidos. Uma autêntica tarde de reviver os tempos aureos do serviço militar, comum a tantos que já deixaram a aldeia. É claro, quanto a mim, o forasteiro, perguntaram apenas como é que um japónio (sic!) como eu, tinha um nome tão português e se na minha terra circulavam automóveis!

Em Macau, “filo-di-quim?” (de quem se é filho), é a expressão mais vulgar do Macaense e, curiosamente, das mais complexas. Não se trata apenas de uma simples pergunta sobre os pais de alguém, para a satisfação de uma curiosidade pessoal. Pois, se se souber à partida que o inquirido não é macaense, ou que os seus pais são estrangeiros, ou que tendo estado em Macau, nunca se misturaram com a “malta”, tal pergunta seria desprovida de qualquer interesse ou sentido. Como exemplo, ninguém se daria ao trabalho de perguntar “filo di quim”a um americano residente, nem a um português oriundo da República (o “metropolitano”) que estivesse aqui de passagem.

Ao questionar “filo di quim”, procura-se saber até que ponto o inquirido é da nossa gente ou com ela relacionado. Se os pais são de Macau, ou não sendo, se juntavam à “nôs-sa genti”. Uma espécie de exame oral de admissão à Comunidade.

No seio desta, com “Filo-di-quim?” vai-se mais longe: procura-se situar o inquirido (já qualificado de macaense), na complexa teia de relações de família e dos bairros em que as mesmas famílias se fixaram. E aí evoca-se o passado ocorrido em chão comum, referências a pessoas ou a episódios de uma vivência sedimentada de longos anos da nossa existência. Um nome puxa outro, o qual por sua vez leva a mencionar-se um terceiro, um quarto ou um quinto, cada um, um manancial de memórias e de histórias. Por outras palavras, se a Memória é a História de um povo, esta despretensiosa interrogação tem a ver com algo mais profundo de se ser Macaense – a sua alma.

Há quem diga que Macau continua a ser uma aldeia. Por mim, ainda bem! E que o seja por muitos anos. A simplicidade da vida, o conhecermos uns aos outros, pode ser enfadonho para muitos. Confesso qui muitas vezes gostaria de me sentir anónimo. Mas, pensando bem, somos o que somos, porque Macau é o que é. E levámos este salutar espírito de aldeia para todos os sítios em que se desdobra a Diáspora. Por isso não espanta ouvir-se um “filo di quim” em Califórnia, Sydney, S. Paulo, Vancouver, Toronto ou em Lisboa, com a mesma característica, dito num mesmo contexto.

Porém, Macau decididamente mudou. E encaminha-se a passos largos rumo à internacionalização. Novos elementos humanos interferem no panorama populacional tradicional deste território, fixando-se nele definitivamente. As pessoas já não se vêm, e muitas passaram a comunicar-se através de SMS ou MSN.

Nesta nova conjuntura, que significado passará a ter o nosso inocente “filo-di-quim"? Talvez uma pergunta em busca de uma afirmação de que não estamos sós. Mas isto melhor dirá o futuro.

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM no dia 07-03-2008)

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