Wednesday, April 16, 2008

QUELÊ-MODO RUFÂ? (Como comer?)

A minha avó Zete dizia que na mesa se revela a pessoa. De riso espontâneo e contagiante, essa senhora era de uma generosidade ímpar, sempre pronta para a festa, para a anedota, para a brejeirice. Mas quando se tratava de boas maneiras, aí era implacável. Não hesitava em fazer reparos quando a miudagem se portava mal à mesa. “Vocês não passam de uns raspiátes (reles)”, dizia. “Como irão jantar ao Palácio (da Praia Grande)?!”, rematava. É evidente que falava dos tempos em que o Palácio cor-de-rosa era a referência do elegante, mal sabendo da evolução dos bons costumes em Macau, imposta pelos novos tempos e sobretudo pelas novas gentes, em que ninguém mais se importa em comer à mão, lamber os dedos besuntados de molhos, à boa maneira do MacDonald’s, fosse na Praia Grande, fosse na Praia do Manduco!

Modos de estar à mesa, postura no assento, o timbre de voz, a brandura dos gestos, a destreza no uso de talheres, a organização da comida no prato, tudo isto é denunciador da pessoa em análise.

Contudo, à mesa não só se descortina o indivíduo. Sobre ela estão outras cartas: as suas origens, a sua história e o meio sócio-cultural em que a mesma pessoa se insere. Neste artigo, não vou falar de etiqueta. Nem de gastronomia, nem de culinária, que ficarão seguramente para uma outra altura. Digamos que, me irei situar a meio do caminho entre a comida que ainda está no prato e boca, o destino final e a razão de ser de tanta literatura sobre a arte do bem cozinhar e comer. Vou falar de talheres!

Mas que isto tem a ver com o ser-se Macaense? Divaguemos um pouco.

Os povos inventaram uma miríade de instrumentos com um único fim prático: levar a comida à boca, pelo modo mais saudável, mais expedito e mais elegante. É verdade que ainda existem alguns que, em certos pratos típicos seus, preferem o uso da mão. Assim acontece, por exemplo, na Índia, nas Filipinas, na Indonésia, ou em certos países árabes. Sem embargo, tal prática é cada vez mais limitada, pois nos tempos hodiernos, até nos povos menos desenvolvidos se contam pelos dedos os casos de manuseamento directo sobre a comida.

No mundo ocidental, ou nas culturas em que o uso do metal se tornou cultura dominante, inventaram-se talheres. A preferência pelo consumo da carne em peças inteiras ou em tamanhos significativos, servida em pratos largos, fez com que o uso da faca fosse preponderante. Não é por acaso que “talher(es)” em português e cutlery, em inglês têm o seu denominador comum na ideia de corte e de golpe. Pois, cortar o naco em pedaços mais pequenos, para que depois com o garfo os pudesse levar à boca, tornou-se uma necessidade lógica. Assim, aquilo que é visto como “prime beef” ou uma costeleta suculenta ocupa normalmente um espaço razoável no prato para ser servido a faca e garfo. Para quem prefira o peixe, repete-se a lógica. A posta é de tamanho razoável (veja-se o “Bacalhau à lagareiro”). E a partir do momento em que o comer se transformou num evento socializador, implicando um refinamento do emprego de talheres, inventaram-se outros derivados, conforme a fértil imaginação das pessoas: garfo e faca para entradas, para o peixe, facas com dentes para bifes de portes descomunais, garfinhos para caracóis, faquinhas para a manteiga, para o “foie gras”, etc.

A vulgarização do arroz ou de outros acompanhamentos miúdos, na refeição normal, não alterou o sistema estabelecido. Quando muito apenas teria favorecido uma ligeira transformação no formato do garfo, que assim passou a ser curvo, para melhor lidar com o consumo do cereal. Pois, se o bom senso indica que não se deve levar a faca à boca, o garfo teria sido incumbido de tal tarefa, para tanto adaptando-se.

E a colher? Bem, esta não passaria de uma espécie de Cindarela dos contos do Walt Disney, a irmã subalterna com a função de levar a comida de um prato para outro ou então regar sobre ela o molho. As únicas ocasiões em que teria o privilégio de levar o alimento à boca, seriam antes e após a refeição principal, nomeadamente com a sopa e os doces.

Mas o que isto tem a ver com o Macau-filo? Tenhamos mais paciência... !

No Extremo-Oriente, mormente no Sul da China, no Japão e na Coreia, o panorama é bem diferente. O sistema rural tradicional assente na cultura do arroz, faz com que este se torne o alimento do povo. E toda a lógica que daí se segue adquire contornos bem distintos. A preferência pende para a comida já partida (cortada) em pequenos bocados antes do cozimento. Nesse contexto, a faca perde todo o sentido como utensílio principal, na acepção do que vim referindo, pois aí quem reina são o que comummente se conhecem por “pauzinhos”, que se pegam ora com uma mão, ora com a outra.

À partida, faz confusão ao ocidental, habituado a talheres, comer uma refeição só com uma mão. Mas se ele soubesse que a eficácia dos pauzinhos só se completa com o uso da tigela, compreenderia muito melhor o sistema. Assim, com os pauzinhos numa mão tira-se a comida para a tigela, normalmente, já contendo arroz; leva-se com a outra mão a tigela para junto da boca, para onde a comida é empurrada, com o auxílio dos pauzinhos. Trata-se de uma forma eficaz e prática de saciar a fome, permitindo comer em pouco tempo, o dobro do que seria com os talheres. Uma forma hábil - embora menos elegante segundo os padrões ocidentais - de saborear melhor a comida.

Por isso, não admira que a comida chinesa se apresente esmiuçada. Não admira que entre as primeiras designações para pratos chineses na Califórnia se encontre Chop Suey, literalmente traduzido por “solto e variado”.

E a colher? Nem aqui ela tem melhor sorte, pois não deixa de ser subordinada à função de levar a comida ou o arroz de um lugar para o outro; aqui também é apenas utilizada para o consumo dos caldos e das sobremesas. Comer o arroz com a colher é sempre visto como falta de etiqueta.

E quanto ao Macau-Filo...

Pois bem, não podendo negar a sua costela lusa, o Macaense é um incondicional fã da carne, nas suas mais variadas expressões gastronómicas. Daí que ele não dispense o uso do metal nos seus utensílios da comezaina. Não há casa macaense que não haja talheres e não há mesa macaense, em refeição comum, sem eles. Seria, por exemplo inconcebível saborear um bom Tacho ou Diabo, sem uma boa garfada.

Por outro lado, não esquece o Macaense onde se encontram as suas raízes: na Ásia, em pleno Sul da China dos arrozais, da comida solta, de pequenos bocados. Tal como sucede com o Patuá, ele inventa a sua culinária e distingue-a bem da comizaina di ngau-sok (comida do português metropolitano).

Tal como o seu conterrâneo chinês, ele nutre uma paixão sem reservas pelo arroz, sendo a batata apenas um complemento nem sempre necessário. E tal como o mesmo chinês, ele gosta de levar à boca uma boa dose de cada vez. Mas o que o aparta definitivamente deste, tem já a ver com aquela sua costela: a sua afeição irredutível pelo molho sobre o arroz. Não há Macaense chapado que resista a ensopar o seu prato. Assim, não dá para apreciar o Porco Bafassá, sem o molho forte a açafrão. A riqueza do Tacho não é só o cha-chau pele (pele de porco), o chouriço chinês, o frango e as couves, senão também o molho com o qual o arroz branco e tenro é regado. Mesmo nos pratos sem molho substancial, ele molha o seu arroz com o caldo. Não admira que quase todos os Macaneses que passaram por Lisboa, elogiam o bife da Portugália, à Pascoal de Melo, bem embebido em caldo de manteiga...

Refeição servida em pratos largos, com arroz molhado, repletos de comida, portanto. Diante deste cenário, como conciliar os dois tipos de comer?

A sua condição de filho da miscigenação, provoca uma alteração na mesa e no jogo dos talheres. Com o seu pragmatismo e a capacidade inata de adaptação que não se fizeram esperar, o Macaense resolve o dilema ... à colherada! Destarte, sem prescindir do metal e sem desistir do arroz e a comida solta e esmiuçada, o Macau-Filo promove a colher ao lugar mais digno, no seu reinventado sistema de manjar. Agora a colher - a mesma Cindarela dos contos Disney, que por ironia do destino encontra o seu Príncipe em Macau! - pelo formato que tem e com a ajuda do garfo leva grandes porções de comida à boca, de modo mais expedito e mais eficiente, ao perfeito agrado de todos. Ela permite saborear com maior facilidade o suculento arroz embebido em molho condimentado a especiaria, acompanhado da carne, da hortaliça, da batata, tudo partido em porções mais reduzidas que dispensam por completo a faca. Pensa-se no Mínchi ou Galinha Cha-Chau Parida ou Capela, para se saber como é especialmente saboroso comer deste modo.

Neste enquadramento, a faca, porém, não é menosprezada, pois é utilizada quando se serve “à europeia”, ou sejam bifes, costeletas, peixe no forno, cozidos, e outros exemplos. Nessas ocasiões o Macaense, sem trair a tradição, adopta instintivamente um ritual: ataca o arroz e a batata com o garfo e a colher, mas quando chega a vez do bife, pousa a colher utiliza a faca para cortar a carne, a qual, acto contínuo, é levada à boca com o garfo. De seguida, pousa a faca e retoma a colher na sua função normal.

Colher e garfo, um casamento encontrado na mesa do Macaense. Simples e vulgares talheres que, no contexto de Macau, contam a história corriqueira, mas rica do Macau-Filo, despido de todas as influências que vem adquirindo ao longo do seu percurso temporal. É este casamento que o acompanha na Diáspora.

Semelhante experiência com este casal, encontramos na Tailândia, no Camboja, no Laos, na Índia, na Indonésia. Não sei qual é o denominador comum. Mero fruto do acaso? Ou a lusitanidade tem algo a ver com isso?

Não especulemos mais. Sentemo-nos à mesa e rufemos bem!

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM em 18-04-2008)