Friday, June 8, 2012

SOBRE NÓS


Recentemente li um artigo de opinião num diário local sobre o que seja “Macaense”. Embora em alguns aspectos não concordasse com ela, gostei do que li porque vinha a despertar algo que anda a fervilhar na alma de muitos de nós. Algo de mais profundo, algo existencial.

O que está  em causa não é tanto o tom de certo protesto que o mesmo artigo pareceu imprimir, mas sim o âmago que o mesmo tocava e que tanto respeita a todos nós Macaenses.

Era a propósito do II Encontro dos Jovens Macaenses realizado no passado Abril, o qual congregou alguns jovens locais e representantes juvenis das Casas de Macau da Diáspora. Foi um evento bem comentado, em todos os sentidos, sobre o qual opiniões mais díspares foram expressas, em conversas de café e tertúlias, quer no mundo real, quer no virtual.

Para já, apoio o espírito dos Encontros. É certo que nem sempre são organizados  na forma do agrado de todos – como se tal fosse possivel - , todavia aplaudo a iniciativa, pois para além da festa que os eventos semelhantes implicam, há um lado simbólico a ter em conta: Macau é a referência do Macaense e o retorno deste reforça os laços de pertença, a ideia de Identidade e a Memória colectiva.

No caso dos jovens, conhecer Macau como berço da sua cultura tem todo o significado.

Mas, volvendo-me ao II Encontro, um dos aspectos que mais atenção causou foi que os jovens oriundos da Diáspora, não nasceram cá e,  com a excepção dos vindos de Portugal e do Brasil, pouco ou nada entendem da língua portuguesa.

A circunstância referida não me choca, pois como se podia esperar de alguém que tenha passado toda a sua vida fora do mundo lusófono pudesse fluir minimamente na língua de Camões? Contudo, isso trouxe como consequência imediata, a discussão sobre se estaríamos perante Macaenses ou não, e em caso positivo que Macaenses eles podiam ser, se é que o conceito comporta gradações.

Esta questão - falsa ou verdadeira, incómoda ou não em face de muitas atingíveis sensibilidades – desperta algo que desde há muito se encontra entre nós como se “caso não resolvido” se tratasse : quem somos nós.
Esta necessidade instintiva de encontrar respostas, também se faz sentir na Internet, graças às redes sociais, onde a troca de opiniões é aberta e pública, coisa que não se assistia no seio da Comunidade até bem recentemente. Como exemplo, quem tiver a benção dos seus administradores para vaguear pelo grupo da Facebook “Conversa Entre a Malta”, pode assistir a vivos debates de ideias sobre quaisquer acontecimentos do nosso burgo, desde a anedota do Joãozinho até à última asneira do autocarro verde.
Ora, entre um desses acesos debates figura a “questão macaense” constantemente à baila, como se tratasse de um inconformado espírito errante, que assombra qualquer projecto que se diz chapado do Macaense.

Falar de nós ou sobre nós não é coisa que acontece ao de leve na Comunidade. Não nego, como é óbvio, a importância de meritórios trabalhos de índole sociológica e antropológica que foram produzidos sobre o Macaense, em que este é estudado sob um prisma estático, como que dissecado com minúcia para se apurarem as suas características mais “típicas”. Refiro-me sim a uma análise numa perspectiva dinâmica sobre esse indivíduo que vemos todos os dias, no serviço, no café, na rua, na boite, no restaurante, na Facebook, a quem chamamos da “Malta”. Quem ele é, como e porque eu me ligo a ele. Onde ele se situa e para onde ele vai, sobretudo nesta Macau tão cheia de modernidade mas tão já empobrecida no que toca ao que é tipicamente seu.

Falar de nós entre nós é assunto que curiosamente se evita. Talvez sejam as susceptibilidades que não se querem ferir, as desavenças mal saradas do passado que ameaçariam reacender-se, as desconfianças em relação ao seu proximo e as retaliações que se temem. Enfim, verdades ou falácias que muitas vezes preferimos obviar a bem da harmonia entre todos, numa imaginária paz comunitária. Afinal, somos poucos e conhecemo-nos demasiadamente bem.

Não obstante, no íntimo de cada um, todos sentem o incómodo do silêncio sobre coisas que nos dizem respeito. Todos falam da necessidade de haver união,  mas como fazê-lo sem ao menos olharmos com olhos de ver o que nos pode unir? Quem somos nós, o que nos é comum, o que nos liga no passado e que se mantém no nosso presente? Por que rumos a trilhar com essa apregoada união?

E já que estivémos a falar dos jovens e da nova geração de Macaenses, os supostos continuadores da Comunidade, o que irão herdar se a actual geração não discute o que deve ser discutido?

Não quero ser alarmista, nem acredito na sina apocalíptica de 2012, mas “o que é ser-se Macaense” deve merecer uma reflexão colectiva por ser fundamental para a nossa sobrevivência enquanto Comunidade. É verdade que muitos povos sobreviveram sem um debate de questões da natureza que acabo de referir. Mas também é verdade que assim aconteceu porque o contexto social ou político em que os mesmos povos se inseriram, exigiam uma forte coesão como condição sine qua non da sua exisência.

Em Macau, ao invés, estamos bem instalados. O Macaense graças à língua que domina, está à vontade na sua terra, tem o seu ganha-pão, aproxima-se das gentes aqui residentes, com quem se relaciona e se casa. O Macaense está em casa. Por isso mesmo se deixa diluir e absorver facilmente. E num cenário menos bom, até se perde.

Daí que faça todo o sentido esta atitude de olharmos para nós proprios para ao menos sabermos o estado actual da nossa situação. Já não bastam declarações públicas vertidas na imprensa sobre a Comunidade que muitos de nós fizémos. A proposta agora é falar sobre nós, entre nós.

Já me perguntaram que objectivos pretenderia alcançar. A resposta é simples: se a Comunidade reivindica afirmação, vai ter que ter uma noção o que ela é, quais os seus contornos, com o que pode contar no futuro. E naturalmente não são outros, senão nós, quem isso ditará.

Mas chegar-se-ia a alguma conclusão? Decerto algumas. Todavia, admitiria  ficarmos com as mesmas dúvidas com que iniciámos. Isto não me preocupa,  pois não temo  a falta de resposta. O que me aflige é a apatia. 

Sâm assi-ia!

(Publicada a versão mais compacta no Jornal Ponto Final, dia 07/06/2012)

Friday, July 18, 2008

NOS-SA CULTURA II

A malfadada Língu Maquista

Todos nós temos recordações que nos marcam pela vida fora. No meu caso, recordo-me dos chás-gordos, aquele convívio saudável a começar pelo fim da tarde prolongando-se até cerca de 8 horas e meia, nesse Macau suave e sereno, de brandos costumes. Enquanto a miudagem corria pelos cantos da casa, os adultos conversavam despreocupadamente, queixando-se da incompreensão dos chefes, falavam dos feitos de Eusébio, saboreando a sopa-lacassá, o caldo inaugural desses serões da boa comezaina macaense.

Recordo-me sobretudo de estar num cantinho, discreto e bem quietinho, escutando as conversas que a minha avó Zete tinha com as suas amigas. A minha atenção era acrescida, pois riam-se sempre muito. Numa destas vezes, percebi que estavam a relatar a história de uma senhora que se queixava do marido surdo e vesgo. Exímias contadoras de histórias, trocavam olhares e a malícia no relato era manifesta. Enquanto uma falava, as outras aguardavam em silêncio, ávidas pelo desfecho do conto, com lábios trémulos, bochechas tensas, antecipando uma gargalhada dada como certa, numa cumplicidade que só as mulheres entendem. Era por mais evidente que a história, tal como as outras não eram contos da carochinha. Porém, a par da brejeirice, o que me despertava também atenção era uma língua estranha que todas falavam. Decerto não era chinês, nem português de escola. Soava antes a espanhol, mas algo me dizia que nem castelhano podia ser. Fosse como fosse, pouco me importava, o certo é que elas se divertiam à brava, à custa dessa lingua de estranhos.

Eis que uma vez, decididamente enchi-me de coragem, fui ter com a minha avó. Tentei reproduzir, perguntando-lhe o que era “Dále na sítio erado” (Deu-lhe no sítio errado) – a frase da queixosa mulher contra o marido surdo e vesgo, motivo da risota desbragada entre elas, naquele serão quente à Rua da Horta e Companhia. Qual não foi o meu espanto, isso não só me valeu uma pronta e severa descompostura, como ainda algo que ainda me assombra no presente momento: “Ou falas português ou não és ninguém”.

Julgo tratar-se de um pensamento geral então em voga e que se enraizou no espírito da Comunidade em Macau, que falar português era sinal de estatuto. Se entre as famílias de classe média e alta, isso não constituía problema, o mesmo não se podia dizer das mais humildes. O sistema educativo de então não só alimentava esta noção, como era implacável para quem fugisse à regra.

Se houve professores de português, dignos deste nome, como Lara Reis, Graciete Batalha, que vieram a Macau e honraram a sua missão altruísta de educar, procurando adaptar-se às nuances linguísticas da terra, outros houve que chegaram com espírito de missionários (ou mercenários) em terras de índios: em nome de Camões, condenavam e arrasavam tudo o que não correspondia a português padrão. A arrogância estampada no rosto de alguns e o sarcasmo na boca de outros, não deixavam saudades nenhumas ao aprendiz forçado da língua de Eça. Encarnavam antes uma prepotência imbecil que não só não aproveitava à Pátria Mãe, como a expunha a um ridículo injusto e cruel.

Um dos episódios que me contaram foi o do aluno macaense que levava constante reprimenda da altiva professora oriunda do norte de Portugal, pelos erros ortográficos que cometia:
- ‘Sôra, onde eu erei agora? Pôfa, eu já prestei tanta atenção já...e fiz o que ouvi da ‘sôra mé!
- És macaio e basta! Um surdo, um mentiruoso, um cabiêça de alhu-chuôcho! Quantas bezes não te disse que cabalos, bacas e bitêlos se escrebem com Bêa? Diz lá meu asno!? (sic!)”

Imagine-se quantos mais impropérios de que o desgraçado não fora alvo noutras situações.

Não restavam dúvidas de que o patuá não tinha condições de sobreviver fora da casa, fora do bairro, por ser motivo de chacota. Se até a forma correcta de se falar português em Macau, podia ser motivo de censura por não corresponder à sua matiz metropolitana, que mais chão poderia ter o nosso vetusto dialecto? De facto, poucos se atreveriam numa ocasião pública fazer uso da palavra em língua que não fosse o “razoábel”.

Falar (mal) português tornou-se um estigma para muitos. Não admira que a baixa nota na disciplina de Português entre os estudantes macaenses, tenha sido e continua a ser uma constante, em contraste com a das disciplinas de Matemática, Ciências ou Inglês.

O sistema sócio-cultural, implantado sobre o português, não restava espaço para o indigenato. O discurso exacerbado da Grande Família Portuguesa “que começava do Minho e terminava em Díli” fez eco em todo o Ultramar e alimentou a imagem do Herói Luso, começando com Viriato, passando por Afonso de Albuquerque e acabando com Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Mas, em contrapartida, ofuscou as manifestações culturais de índole regional. Se tal era o desígnio do Estado Novo, centralizador e redutor de quaisquer resquícios regionalistas, a Província de Macau pagou caro, pois sacrificou muito mais do que ganhou – se é que ganhou algo.

Patuá, era pois encarada como português mal falado, uma negação de estatuto, portanto. Não servia para o orgulho de se ser macaense, antes o denegria. Tal convicção existiu e perdurou entre nós, sendo muitas vezes a razão pela qual nos criticávamos uns aos outros.
- Ele é um incompetente.
- Porquê?
- Nem falar português sabe!


Teria sido assunto para esquecer, senão houvesse por ele o carinho ímpar de gente como José Marques Pereira, Danilo Barreiros, Graciete Batalha e acima de todos Adé dos Santos Ferreira que, lutando contra todas as intempéries, repuseram o chão por onde o nosso “vergonhoso” dialecto pudesse dar os seus passos com um mínimo de dignidade.

Se ao patuá não se reservava um lugar de eleição, nós Macaenses também não o poupámos. Não vale a pena culparmos o passado, pois temos imensas “culpas no cartório”, sobretudo em termos acelerado o processo da sua erosão. Perdemos muito à custa dos nossos complexos. Tratamos tão mal das nossas coisas.

Abraçar o patuá fazendo dele uma causa, é nobre. Mas, tal como todas coisas nobres, nada é pera doce. Há sempre aquela voz crítica por trás, que nos diz quão errados nós estamos, mas que se cala logo que procuramos saber da causa do erro.

Quantas vezes Adé não teria suportado a chacota de quem se achava mais sabedor, mas que se recusava a compartilhar a sabedoria dos seus avós? Quantas vezes não teria o mesmo ouvido comentários gratuitos de que o seu patuá não era o genuíno, sem depois se saber de que genuinidade se tratava? Quantas vezes não teria sido apelidado efectivamente de aldrabão, só porque sentia a necessidade de macaizar palavras novas, enriquecendo e recriando o parco vocabulário da língu maquista? Tratamos realmente tão mal das nossas coisas...!

Quanto a mim, pouco me importa se o patuá que escrevo está ou não provido de certificado de origem. Não porque não me preocupe o rigor do seu estudo. Não que sinta indiferença pela verdade. Sou um eterno aprendiz e provavelmente nunca chegarei a mestre. Todavia, o que para mim interessa é o fazer já, é o pôr tudo a terreno até que me convençam do meu erro. Sim, estou ostensivamente numa de desafiar, para que me ensinem, para que apontem o dedo, indicando o caminho certo para me navegar. Mais uma vez posso estar enganado, mas talvez assim colhe melhores reultados. É que cansados estou eu e todos nós em esperar pelo “Big Brother”, em jeito semelhante ao dos judeus relativamente ao seu Messias.

Nunca se ouviu falar tanto na palavra “património”, como nos dias de hoje. Antigamente ela aparecia normalmente nas placas afixadas em edifícios designados do domínio público. Falava-se de “Património de Estado”. Mas nos tempos modernos, o património já é “cultural”, é “mundial”, é “tangível” e depois “intangível”. Sejam que mais atributos forem, seja qual for a forma que o Patuá nos tange, ele é o nosso património. É ele que nos diz quem nós somos. Negá-lo é apagar um passado, uma memória e uma História.

Sâm assi-ia!
(Publicado no JTM a 18/07/2008)

Friday, June 20, 2008

NÔS-SA CULTURA - I



Há dias, numa conversa interessante que tive com uma querida amiga minha, argumentava ela que se quisesse mostrar a qualquer visitante o que a Comunidade pode oferecer, apenas poderia contar com duas coisas: a culinária macaense e o patuá. “Que mais temos nós? Que mais?” bradava a minha simpática conterrânea, em tom de inequívoca frustração e, se calhar, de algum embaraço pelo panorama cultural aparentemente parco que a “malta” pode efectivamente mostrar a quem esteja minimamente interessado por essas coisas das gentes de Macau.

Há quem entre nós seja mais contundente: “Não somos, nem carne, nem peixe. Quando muito, mais “carneixe” ou mais “peixarne”ou uma mistela de outro tipo. Para quê falar de nós próprios? Uma pura perda de tempo, é o que é!”.

Embora não comungue este pessimismo, chego a entender o desalento. De facto, era bom que tivessemos uma dança típica, que tivéssemos folclore macaense, que os nossos bandolineiros, resistindo aos ventos do Rock’n’Roll, House e Hip Hop, formassem uma nova geração de músicos com uma sonoridade que possamos chamar “nossa”. É um facto que as nossas mulheres já abandonaram a saraça e o dó faz mais de cem anos, e não existem mais assaltos de Carnaval. A casa tipicamente macaense, para além do crucifixo ou da figura de Nossa Senhora, está apetrechada de objectos e utensílios made in China de marca japonesa, que nada a diferenciam do lar do vizinho chinês ou filipino. Para a nova geração “Macau, Terra Minha” é apenas uma canção “gira” ou “fixe”, e “Macau Sâm assi” esteve no TOP 10 em Macau dos anos 50, do século passado (sic!). As procissões de Nossa Senhora de Fátima e do Senhor dos Passos, durante muito tempo identificado como iniciativa católica macaense, começam a deixar de o ser.

Enfim, uma série de “nãos” que dá uma certa razão a quem seja menos optimista quanto à nossa existência.

Contudo, sem menosprezo para com as legítimas susceptibilidades em causa, se tudo isso é verdade, não é isso que verdadeiramente me preocupa. Será que precisamos realmente dessas coisas típicas para sermos minimamente típicos? Será que tenhamos que ser ou carne ou peixe, para sermos gente, para sermos Comunidade? A resposta que se impõe é um rotundo não. Quem conhece a história de Macau e a senda dos Macaenses sabe que sempre estivemos na “corda bamba”. E não poucas vezes tivemos que sacrificar o que é nosso para satisfazer os interesses de dois lados, ou para sobrevivermos nos países que nos acolheram. Foi sempre este o nosso bilhete para o combóio.

Caminhámos tanto, percorremos séculos, adaptámo-nos a tantos governantes e a tantos estilos de vida, quer na bonança, quer nos dias mais negros, vivemos bem e andámos não poucas vezes com o coração nas mãos. Não temos muito, mas temos História.

Não é esse, portanto, o plano das nossas preocupações. A nossa verdadeira inquietação é algo bem pior: o modo como nós tratamos de nós próprios e das nossas coisas. Aí sim, há motivos de sobeja para nos preocuparmos seriamente. É que, somos tão mauzinhos connosco mesmos...!

Vejamos na culinária.
Todos nós lamentamos que muitas receitas de pratos típicos deixaram de existir. Queixamo-nos de que hoje em dia comemos apenas corruptelas ou versões descaradas (aldrabadas) daquilo que foi o manjar dos deuses que “só a avó Béba, ou títi Marichai sabiam preparar. Pois, aquilo é que era o genuíno!”

Todos dias criticamos e chamamos inimagináveis nomes a quem ouse apresentar um prato antigo e tipicamente macaense, de que nossos familiares ou alguém conhecido, se notabilizaram a confeccionar. “Chupa-ovo, nem sabe o que é cozinhar!” ou então desdenhosa e paternalmente, “Né mau, jeito nâm falta! Mas... - eis agora o remate demolidor - ... nâm sabe, nem há-de saber o segredo do sabor!”.

Quando alguém se enche de coragem e resolve dar lições de culinária macaense – cruzes! – seria caso para por mãos à cabeça, para melhor proteger da chuva de escárnio e de maldizer contra essa tamanha audácia.

Contudo, ao perguntarmos humildemente “a quem de direito” sobre a maneira correcta de o fazer, a conversa ficaria irremediavelmente por aí, como se de matéria lesa-majestade se tratasse. Aí imperaria o tabú com o know-how guardado a sete chaves. Mesmo que haja gente mais generosa que se prontificasse a explicar, ficaríamos sempre com a impressão de que apenas nos deram sessenta por cento da informação.

Pode-se facilmente imaginar quantas ricas receitas não foram deste modo arredadas do conhecimento geral, conservadas em cadernos ou pergaminhos perdidos em gavetas, arcas e baús, para depois terem o lúgubre destino de se acabarem no papo da traça e da formiga branca. Quantas outras não acompanharam os seus donos para as respectivas sepulturas, em jeito semelhante ao das jóias e objectos preciosos dos faraós? “Bagí di Cecília, Mamún di Dóna Celeste, Saransurave di Chico-Mano... qui sabroso, só di pensâ, boca ta corê babo iâ! Cuza? Como fazê?? Sâm priguntâ co S. Miguel!” (O Bagí da Cecília, o Mamún da Dona Celeste, que delícia. Basta pensar nisso enche-me a boca a saliva. O quê? Como fazer? Procure saber junto do [Cemitério de] S. Miguel!).

Quantas mais não desaparecerão, com o correr dos tempos? E o esquecimento a que tantas outras são votadas, pelo seu não uso, ou pela obstinada recusa dos seus guardiões em compartilhá-las? Depois admiramos revoltados por existirem estabelecimentos ditos de cozinha tipicamente macaense, onde não se vislumbra nada que fosse próximo da nossa comida.

Esta atitude de “eu sei mais que tu, mas não te digo nada” é compreensível num mundo de competição. Mas neste contexto, só causa em mim uma profunda tristeza. Tristeza porque encarna a visão de um perecimento inglório para uma cultura multissecular.

Por isso, deposito esperança na recém-criada Confraria da Gastronomia Macaense. Com os propósitos pelos quais foi criada, ela tem uma responsabilidade de peso na preservação de um dos importantes pilares da cultura macaense. Não que ela seja ou venha a ser o supra-sumo sobre o que é o manjar macaense, nem espero que ela faça ressuscitar ao terceiro dia o Margoso-lorcha de Chico-Meno, ou a Cánji di Fula Papaia do saudoso António Assumpção. Espero, sim, um redobrado esforço para que se dê um novo alento, encorajando e estimulando iniciativas de redescoberta – senão mesmo, de reinvenção - da gastronomia macaense. O seu sucesso não dependerá tanto de se publicar mais um manual do Mínchi ou de se construir o projectado Museu da Gastronomia Macaense, mas sim da visão de abertura para todas as soluções de enriquecimento da nossa culinária, sem preconceitos nem complexos.

O mesmo gesto, embora numa dimensão diferente, e dentro das possibilidades de cada uma, espero também da Associação dos Macaenses e da APOMAC, dois importantes núcleos aglutinadores da Comunidade, bem como de outras instituições e organismos que se prezam pela defesa da identidade macaense, despertando a consciência colectiva de que ou compartilhamos sabedoria, ou estamos ... ferado! (lixados!)

Com o patuá a história é outra, mas a moral é a mesma. Deixemos isso para o próximo número.

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM no dia 19-06-2008)



Wednesday, April 16, 2008

QUELÊ-MODO RUFÂ? (Como comer?)

A minha avó Zete dizia que na mesa se revela a pessoa. De riso espontâneo e contagiante, essa senhora era de uma generosidade ímpar, sempre pronta para a festa, para a anedota, para a brejeirice. Mas quando se tratava de boas maneiras, aí era implacável. Não hesitava em fazer reparos quando a miudagem se portava mal à mesa. “Vocês não passam de uns raspiátes (reles)”, dizia. “Como irão jantar ao Palácio (da Praia Grande)?!”, rematava. É evidente que falava dos tempos em que o Palácio cor-de-rosa era a referência do elegante, mal sabendo da evolução dos bons costumes em Macau, imposta pelos novos tempos e sobretudo pelas novas gentes, em que ninguém mais se importa em comer à mão, lamber os dedos besuntados de molhos, à boa maneira do MacDonald’s, fosse na Praia Grande, fosse na Praia do Manduco!

Modos de estar à mesa, postura no assento, o timbre de voz, a brandura dos gestos, a destreza no uso de talheres, a organização da comida no prato, tudo isto é denunciador da pessoa em análise.

Contudo, à mesa não só se descortina o indivíduo. Sobre ela estão outras cartas: as suas origens, a sua história e o meio sócio-cultural em que a mesma pessoa se insere. Neste artigo, não vou falar de etiqueta. Nem de gastronomia, nem de culinária, que ficarão seguramente para uma outra altura. Digamos que, me irei situar a meio do caminho entre a comida que ainda está no prato e boca, o destino final e a razão de ser de tanta literatura sobre a arte do bem cozinhar e comer. Vou falar de talheres!

Mas que isto tem a ver com o ser-se Macaense? Divaguemos um pouco.

Os povos inventaram uma miríade de instrumentos com um único fim prático: levar a comida à boca, pelo modo mais saudável, mais expedito e mais elegante. É verdade que ainda existem alguns que, em certos pratos típicos seus, preferem o uso da mão. Assim acontece, por exemplo, na Índia, nas Filipinas, na Indonésia, ou em certos países árabes. Sem embargo, tal prática é cada vez mais limitada, pois nos tempos hodiernos, até nos povos menos desenvolvidos se contam pelos dedos os casos de manuseamento directo sobre a comida.

No mundo ocidental, ou nas culturas em que o uso do metal se tornou cultura dominante, inventaram-se talheres. A preferência pelo consumo da carne em peças inteiras ou em tamanhos significativos, servida em pratos largos, fez com que o uso da faca fosse preponderante. Não é por acaso que “talher(es)” em português e cutlery, em inglês têm o seu denominador comum na ideia de corte e de golpe. Pois, cortar o naco em pedaços mais pequenos, para que depois com o garfo os pudesse levar à boca, tornou-se uma necessidade lógica. Assim, aquilo que é visto como “prime beef” ou uma costeleta suculenta ocupa normalmente um espaço razoável no prato para ser servido a faca e garfo. Para quem prefira o peixe, repete-se a lógica. A posta é de tamanho razoável (veja-se o “Bacalhau à lagareiro”). E a partir do momento em que o comer se transformou num evento socializador, implicando um refinamento do emprego de talheres, inventaram-se outros derivados, conforme a fértil imaginação das pessoas: garfo e faca para entradas, para o peixe, facas com dentes para bifes de portes descomunais, garfinhos para caracóis, faquinhas para a manteiga, para o “foie gras”, etc.

A vulgarização do arroz ou de outros acompanhamentos miúdos, na refeição normal, não alterou o sistema estabelecido. Quando muito apenas teria favorecido uma ligeira transformação no formato do garfo, que assim passou a ser curvo, para melhor lidar com o consumo do cereal. Pois, se o bom senso indica que não se deve levar a faca à boca, o garfo teria sido incumbido de tal tarefa, para tanto adaptando-se.

E a colher? Bem, esta não passaria de uma espécie de Cindarela dos contos do Walt Disney, a irmã subalterna com a função de levar a comida de um prato para outro ou então regar sobre ela o molho. As únicas ocasiões em que teria o privilégio de levar o alimento à boca, seriam antes e após a refeição principal, nomeadamente com a sopa e os doces.

Mas o que isto tem a ver com o Macau-filo? Tenhamos mais paciência... !

No Extremo-Oriente, mormente no Sul da China, no Japão e na Coreia, o panorama é bem diferente. O sistema rural tradicional assente na cultura do arroz, faz com que este se torne o alimento do povo. E toda a lógica que daí se segue adquire contornos bem distintos. A preferência pende para a comida já partida (cortada) em pequenos bocados antes do cozimento. Nesse contexto, a faca perde todo o sentido como utensílio principal, na acepção do que vim referindo, pois aí quem reina são o que comummente se conhecem por “pauzinhos”, que se pegam ora com uma mão, ora com a outra.

À partida, faz confusão ao ocidental, habituado a talheres, comer uma refeição só com uma mão. Mas se ele soubesse que a eficácia dos pauzinhos só se completa com o uso da tigela, compreenderia muito melhor o sistema. Assim, com os pauzinhos numa mão tira-se a comida para a tigela, normalmente, já contendo arroz; leva-se com a outra mão a tigela para junto da boca, para onde a comida é empurrada, com o auxílio dos pauzinhos. Trata-se de uma forma eficaz e prática de saciar a fome, permitindo comer em pouco tempo, o dobro do que seria com os talheres. Uma forma hábil - embora menos elegante segundo os padrões ocidentais - de saborear melhor a comida.

Por isso, não admira que a comida chinesa se apresente esmiuçada. Não admira que entre as primeiras designações para pratos chineses na Califórnia se encontre Chop Suey, literalmente traduzido por “solto e variado”.

E a colher? Nem aqui ela tem melhor sorte, pois não deixa de ser subordinada à função de levar a comida ou o arroz de um lugar para o outro; aqui também é apenas utilizada para o consumo dos caldos e das sobremesas. Comer o arroz com a colher é sempre visto como falta de etiqueta.

E quanto ao Macau-Filo...

Pois bem, não podendo negar a sua costela lusa, o Macaense é um incondicional fã da carne, nas suas mais variadas expressões gastronómicas. Daí que ele não dispense o uso do metal nos seus utensílios da comezaina. Não há casa macaense que não haja talheres e não há mesa macaense, em refeição comum, sem eles. Seria, por exemplo inconcebível saborear um bom Tacho ou Diabo, sem uma boa garfada.

Por outro lado, não esquece o Macaense onde se encontram as suas raízes: na Ásia, em pleno Sul da China dos arrozais, da comida solta, de pequenos bocados. Tal como sucede com o Patuá, ele inventa a sua culinária e distingue-a bem da comizaina di ngau-sok (comida do português metropolitano).

Tal como o seu conterrâneo chinês, ele nutre uma paixão sem reservas pelo arroz, sendo a batata apenas um complemento nem sempre necessário. E tal como o mesmo chinês, ele gosta de levar à boca uma boa dose de cada vez. Mas o que o aparta definitivamente deste, tem já a ver com aquela sua costela: a sua afeição irredutível pelo molho sobre o arroz. Não há Macaense chapado que resista a ensopar o seu prato. Assim, não dá para apreciar o Porco Bafassá, sem o molho forte a açafrão. A riqueza do Tacho não é só o cha-chau pele (pele de porco), o chouriço chinês, o frango e as couves, senão também o molho com o qual o arroz branco e tenro é regado. Mesmo nos pratos sem molho substancial, ele molha o seu arroz com o caldo. Não admira que quase todos os Macaneses que passaram por Lisboa, elogiam o bife da Portugália, à Pascoal de Melo, bem embebido em caldo de manteiga...

Refeição servida em pratos largos, com arroz molhado, repletos de comida, portanto. Diante deste cenário, como conciliar os dois tipos de comer?

A sua condição de filho da miscigenação, provoca uma alteração na mesa e no jogo dos talheres. Com o seu pragmatismo e a capacidade inata de adaptação que não se fizeram esperar, o Macaense resolve o dilema ... à colherada! Destarte, sem prescindir do metal e sem desistir do arroz e a comida solta e esmiuçada, o Macau-Filo promove a colher ao lugar mais digno, no seu reinventado sistema de manjar. Agora a colher - a mesma Cindarela dos contos Disney, que por ironia do destino encontra o seu Príncipe em Macau! - pelo formato que tem e com a ajuda do garfo leva grandes porções de comida à boca, de modo mais expedito e mais eficiente, ao perfeito agrado de todos. Ela permite saborear com maior facilidade o suculento arroz embebido em molho condimentado a especiaria, acompanhado da carne, da hortaliça, da batata, tudo partido em porções mais reduzidas que dispensam por completo a faca. Pensa-se no Mínchi ou Galinha Cha-Chau Parida ou Capela, para se saber como é especialmente saboroso comer deste modo.

Neste enquadramento, a faca, porém, não é menosprezada, pois é utilizada quando se serve “à europeia”, ou sejam bifes, costeletas, peixe no forno, cozidos, e outros exemplos. Nessas ocasiões o Macaense, sem trair a tradição, adopta instintivamente um ritual: ataca o arroz e a batata com o garfo e a colher, mas quando chega a vez do bife, pousa a colher utiliza a faca para cortar a carne, a qual, acto contínuo, é levada à boca com o garfo. De seguida, pousa a faca e retoma a colher na sua função normal.

Colher e garfo, um casamento encontrado na mesa do Macaense. Simples e vulgares talheres que, no contexto de Macau, contam a história corriqueira, mas rica do Macau-Filo, despido de todas as influências que vem adquirindo ao longo do seu percurso temporal. É este casamento que o acompanha na Diáspora.

Semelhante experiência com este casal, encontramos na Tailândia, no Camboja, no Laos, na Índia, na Indonésia. Não sei qual é o denominador comum. Mero fruto do acaso? Ou a lusitanidade tem algo a ver com isso?

Não especulemos mais. Sentemo-nos à mesa e rufemos bem!

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM em 18-04-2008)


Thursday, March 27, 2008

VÔS QUI NÓMI?

O telefona toca.
- ­Hello? Sâm quím?
- Bô-tarde, Gege, por favor.
- Vôs sâm quím?
- António...
- António, quim?
- António Rosário...
- Qual António Rosário?
- António Procópio Menezes da Costa Salvaterra dos Passos Martins do Rosário!!
- Cuza??
- Pofa! “Boi-Preto” mé!
- Ahhh...Vôs! ... Pai tá bom?!
- ...!


O nome de um indivíduo é prova cabal de que o homem vive em sociedade. De facto, ele só tem sentido ou utilidade, enquanto meio para que outros nos possam identificar. Por outras palavras, o nome é algo para o “outro ver”.

Contudo, é comum ter um indivíduo vários modos de se referir. A diversidade de situações interpessoais, a infinita teia de relações sociais e a complexa interacção em que nos envolvemos no trato com próximo, fazem de nós objecto de diversas qualificações, culminando com identificações várias. E não raro é que entre estas, umas são mais conhecidas que outras. Aos olhos dos outros, somos bem distintos do que efectivamente julgamos ser. Por isso, o modo como somos vistos no nosso meio, longe de depender da nossa exclusiva vontade, é o que resulta da nossa vivência com outros.

Para alguns, os nomes com que nós nos baptizámos têm apenas a função de nos relacionar ao Estado, enquanto ente organizador da identificação dos seus cidadãos, ou a todos os outros que se situem fora das fronteiras do nosso meio. Com algum exagero, é certo. Porém, bem vistas as coisas no contexto de Macau, tal convicção não dista da realidade. Somos efectivamente apelidados de formas tão díspares, a ponto de ignorarmos, sem querermos, a chamada de quem nos trate pelo nosso nome “oficial”.

Assim, para a frustração dos nossos pais, os nomes que nos escolheram - após longas consultas aos nossos avós, aos tios, aos primos, ao mestre-adivinho, ao quiromante, ao pároco, à lista onomástica oficial, às páginas amarelas e sabe-se lá a quem mais, com a paciência que só Deus compreenderia - muitas vezes acabam por se reduzirem a meras palavras que constam do nosso bilhete de identidade, do passaporte ou da carta de condução. Relegado para um plano inferior, sem uso corrente, sem vida.

Ora, isto acontece quando o nome oficial é suplantado no seu emprego normal por outros identificativos. São eles que passarão a tomar conta da nossa identidade para o resto da vida, sendo o meio mais idóneo para nos referir e a resposta mais apropriada para a pergunta “filo di quím?”.

Hipocorísticos e alcunhas, são, portanto, formas sucedâneas de identificação de um indivíduo inserido num meio social restrito, em que todos se conhecem, ou, pelo menos, ninguém é estranho a ninguém. No caso de Macau, tal não foi excepção. Porém, nem sempre é fácil a sua distinção. Cheguei a fazer uma compilação deles e confesso ter sentido alguma dificuldade em destrinçá-los.

Começando pelos primeiros, por definição, eles resultam de círculos sociais mais pequenos, mormente familiares. Em Macau, chamavam-se nómi-di-casa ou nómi-di-família, sugerindo o ambiente de ternura e de afecto como é o lar onde crescemos. São empregues no diminutivo, por se tratarem de nomes dados a crianças de tenra idade, e por isso mesmo também foram conhecidos por nómi-dóci, designação naturalmente inspirada na doçura inocente e infantil, própria da idade em referência. Em muitos casos, nasceram de corruptelas cometidas pelas amas chinesas que as cuidavam, sem para tal terem conhecimentos da língua portuguesa. Com o tempo, popularizaram-se no seio da Comunidade e entraram no uso vulgar de todos. O que me fez recordar um episódio contado por uma pessoa amiga, em que ela teria começado por tratar o seu recém-nascido filho por A-Chai, enquanto se decidia qual seu nome de baptismo. Sem surpresa, o senhor é hoje conhecido por aquele, e não pelo que passou pela água benta. Nomes como Atútu, Bibico, Calim, Ila, Ito, Mana-Chai, Mui-Mui, Nonó, Púchi, Quinho, Taco, Zinho acompanham a vida inteira dos seus donos, cada um com a sua distinção e individualidade.

Adé dos Santos Ferreira foi conhecido como o Poeta da Língu Maquista. Zezé Rosário, o antigo Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Macau. O saudoso otorrinolaringologista, alto e de cabelos de cor de platina chamava-se Dr. Chacha Luz. Maco Amante, Mujica Silvestre, A-Mó Rocha, os irmãos Mano, Aling e Dado Siqueira, da Tuna Esperança e outros, fizeram do bandolim o instrumento emblemático e, por sinal, o mais nostálgico das Tunas de Macau.

O ilustre deputado macaense, indigitado para a Conferência Política Consultiva do Povo Chinês dá-se pelo nome de Neco Alves. Chúchu Xavier Ritchie foi antiga Presidente da Assembleia Legislativa de Macau. Os seus irmãos são Nico, Zinha, Manú e Édo Xavier. Chai-Chai Rodrigues dirige os destinos da APIM e do Conselho das Comunidades Macaenses. À testa do Instituto dos Estudos Europeus está o ex-Presidente do extinto Leal Senado, Zito Sales Marques. A Escola Portuguesa de Macau, tem Didí Silva como sua Directora e Jimmy Rangel, ex-Secretário Adjunto durante a Administração Portuguesa, é o homem do Instituto Internacional de Macau. Ninho e Zeca Azedo, são ilustres juristas, sendo um, ex-Presidente da Associação dos Advogados de Macau, e outro, Juiz do Tribunal de Segunda Instância. Peca Jorge publicou com o seu marido os famosos e há muito esgotados Álbuns de Macau. Api Rosário, A-Lou Airosa, Lélé Rosa Duque, dos lendários Thunders, fizeram “Macau Terra Minha”, o hino saudosista dos Macaenses. Totó Branco é Presidente da Direcção da Casa de Macau em S. Paulo. Na Banca, marcaram presença Léni Costa e Pom-Pom Magalhães, assim como no Hóquei estiveram Édu e Dico Cordeiro e Jozico Rocha, entre tantos outros.

Néu-Néu Coelho, Nandinha Robarts, Chichóni, Charly e Tirita Santos Ferreira, Nano Silva; Gito Jesus; os irmãos Bicho, Coque e Ato Morais; Ricky, Doobee, Beto, Manel e Teri Nolasco; Abíbe, Achúchi e Meno Airosa; Géni, Édi e Jóni Nascimento. É infindável o rol desses nomes. Mas não é esse o objectivo deste artigo, senão apenas retratar esta face tão pitoresca da Comunidade.

Quanto ao segundo grupo, não tenho a certeza se existe ou tenha existido alguma designação macaense para alcunha. Não obstante, já ouvi expressões como nómi-chiste ou nómi-bobo ou mesmo nómi di rua, com esse significado. Que me perdoem os puristas, mas serão estes que irei utilizar para o presente artigo.

Com a alcunha estamos bem fora de casa, transpondo as fronteiras da família. Situamo-nos agora na escola, na rua, no bairro, no serviço, com os amigos e colegas. Se o nómi-di-casa traduz aquela ternura de um meio familiar donde brotou, o nómi-di-rua é mordaz nas suas manifestações. O designado encontrar-se-ia numa situação de inelutabilidade e de resignação, à mercê do escárnio cruel do meio. Como uma tatuagem gravada na sua pele, também ele acompanhará o contemplado até à sua morte.

Sem embargo, é da alcunha que se extrai o que há de mais rico da imaginação humorística macaense. O nómi-di-rua não só consiste num epíteto, pois também encerra uma vivência, narra um episódio parado no tempo, uma autêntica fotografia de um momento na vida, acima de tudo, imbuída de comicidade brejeira. E muitas vezes traduzem-se em ressábios do povo contra os mais vaidosos e abusadores, sendo a alcunha um instrumento nivelador de eventuais disparidades sociais.

Calinho Tau Kai (tau kai = roubar galinhas), notabilizou-se por ser um descarado papa-frangos. Cemitério Vong Hin, o endiabrado apaixonado pela pesca que ia ao cemitério caçar a suculenta minhoca amarelada das covas (“vong hin”) para isco. A canção italiana popular imortalizada por Emilio Pericoli, valeu ao seu ferrenho fã macaense o nome de Al-Di-La. Aquela mulher de nádegas avantajadas que lhe impunham um bamboleante andar pachorento, ganhou o nome de Bombordo-Estibordo. O andar cadenciado pendendo o corpo para a esquerda e para a direita herdou ao seu dono a designação de Pêndulo. E o Esqueleto deambulava pelas ruas de Macau como um saco andante de ossos. O campeão da modalidade orgulhava-se em largar trinta e seis puns (peidos) numa assentada, por isso Tira-Pum foi como se conheceu. O seu semblante inexpressivo, mesmo em ocasiões de grande euforia, deu-lhe a fama de Cara-de-Aço. Quarenta-e-seis, foi o nome que lhe atribuíram, por ser a medida dos seus magníficos peitorais. Mas, Tai-Nin-Po (literalmente, “Mamas Grandes”), não se inferiorizava em números e Chili-Ponta-Céu, tinha os seus seios bem arrebitados.

Madame Machado era a professora de Francês e a incorrecta pronúncia da palavra gaulesa “Tableau”, valeu ao aluno o nome de Tabléu ou Tabliáu. Madre era o efeminado e Half-Man, a mulher máscula. Os gloriosos feitos em noites de amor deram ao Língua-de-ferro, o título que merecia. E a Shit-Man calhou parar a sua motorizada no sítio e no momento em que rebentava o cano de esgoto. Radar cheirava a notícia à distância, enquanto que Catavento virava-se conforme a conveniência dos ventos.

Cú-de-Pato, Cú-de-Chumbo, Pé-Grosso e Pé-de-Bambú. Bebé-Gordo, Bebé-Preto, Bebé-Rato. Gafanhoto, Mosquito, Piolho e Chong-Mei-Mei (Libelinha). Bôi, Bôi-Apis, Pai-de-Bôi, Olho-de-Bôi. Bexigoso-Em-Dois-Segundos, Cindarella-Stepsister e Tap-Siac-Sisters. Jacaré, Mula, Mamute, Macaco. E mais tantos outros, bem demonstrativos do fino mas cáustico sentido de humor dos Macaenses.

A bem ou a mal, as famílias também foram alcunhadas. Assim, Mendonçada para os Mendonças, Rosalhada para os Rosários, Nolascada para os Nolascos, Pancraciada para os Silvas, descendentes de Júlio Pancrácio. Num dia, numa das antigas lojas de mouros, de Macau de outros tempos, três irmãs apreciavam chapéus. Uma delas pergunta a outra se o que tinha nas mãos era bonito, ao que lhe foi respondido: “Very Good...un-pôco chipido!”(Muito bonito, mas um pouco achatado). Daí Very-Good-Chipido, que se estendeu para o resto da prole. Aos Senna Fernandes já chamaram tantos nomes, sendo um deles, segundo me contaram, Leng Tong Kuang (ferro velho!), decerto uma informação interessante por se confirmar! De irmãos, tivemos, entre outros, Tai-Capí (o grande Capí) e Capi-Chai (pequeno Capí); Duro-duro e Móli-Móli.

Em Macau existe um nome polivalente, que de modo algum eu deixaria escapar: Chico. Não é só diminutivo de Francisco, nem se resume apenas ao sinónimo de imbecil, como muitas vezes tal é entendido. Chico é acima de tudo o homem vulgar do povo, com o orgulho da sua simplicidade. Mas Chico também é um complemento de alcunhas. Chico-Micróbio, andava obececado com a ideia de que tudo estava infestado de vírus e bactérias. Chico-Mente usava – exageradamente! - o advérbio de modo, e Chico-Direi começava as frases com “como direi...”. Chico-Rapariga, Chico-Madame, Chico-Menina, irmãos Chico-Mama e Chico-Teta, Chico-Aflito, Chico-Preto, Chico-Bate-Pé, Chico-Pé-Pesado e tantos outros Chicos existiram, conforme a ocasião, a história de fundo, ao sabor do génio chistoso do Macau-Filo.

Hipocorísticos e alcunhas macaenses, nómi-dóci e nómi-chiste, ambos traduzindo uma realidade: uma plurifacetada comunidade com um passado rico em experiências e vicissitudes da vida, neste Macau fustigado por tantos tufões de mudança ao longo da sua História multissecular. E quanto mais penso neles, mais nostalgia sinto pela minha “aldeia”. Porém, os tempos são outros, há que se adaptar a eles. Provavelmente continuarão a nascer mais Chicos ou mais Necos, sem ninguém dar por isso, neste Macau cada vez mais impessoal. Mais anónimo. Mais ... cidade.

Antes de terminar não podia deixar de fazer uma breve referência ao seguinte.

Após o handover, surge em Macau um “tertium genus”. Um tipo de nome nunca antes visto. Ao invés dos outros que nasceram por consenso social, este é imposto. Um tipo de nome que se estende a toda a população, não se confinando à Comunidade. São os nómi-co-vírgula, nómi-di-BIR ou simplesmente nómi-contrario, à falta de melhores designações (!). Pela primeira vez em Macau, uma vírgula aparece nos nossos nomes, sejam eles quais forem, em nome da uniformização do sistema de identificação dos residentes de Macau. Isso não é novidade, pois já em Hong Kong isso acontece aos nomes ocidentais. O que já espanta, e para o qual não existe uma razão mais plausível, é que o raio da vírgula aparece também nos nomes chineses. Uma uniformização até às últimas consequências, portanto!

Passei a ser Senna Fernandes, Henrique Miguel Rodrigues de. Oficialmente, já não sei se sou da família do meu irmão, que passou a ser Rodrigues de Senna Fernandes, Filipe Augusto. Um primo meu tem o seu a começar por Fernandes, e outro por De...! Agora, se eu quisesse identificar-me com o meu nome de baptismo, teria que o fazer por abonação de pessoas idóneas ou exibir competente certificação, pois o notário ou qualquer funcionário não terá qualquer obrigação funcional de saber mais nada, para além do que consta do meu BIR. Nem quero imaginar que nome teria o meu amigo de Sevilha Hernán Enrique Cuevas Y Castelón Rubia se optasse por ser residente em Macau.

Mas, pus-me a pensar, para quê barafustar? Se calhar nós é que temos a culpa de termos nomes compridos que não cabem nas bases de dados! Culpa por complicá-los, conservando os apelidos dos nossos avós e bisavós. Culpa por não termos a tradição dos apelidos precederem os nomes próprios. Culpa por se ter sedimentado ao longo de séculos, uma prática administrativa que diferenciasse tipos de nomes culturalmente diferentes. Resignemo-nos. Já temos muita sorte de não nos imporem o ponto-e-vírgula! Afinal sempre se confirma o que atrás se disse: o nome é o que outro diz que deve ser.

Se agora me perguntarem “Vôs qui nómi”? Provavelmente responderia “Qui sábi”!

Sâm assi-ia!
(Publicado no JTM em 26-03-2008)

Saturday, March 15, 2008

FILO DI QUÍM?

- Dona Ména, bom dia!
- Bô-dia, como tá vai? Cuza querê? (Bom dia, como vai? Que quer você?)
- Bem obrigado, sou António, vim buscar a sua neta Cecília...
- António, qui bunitéza... Macau-filo? (António, que simpático... de Macau?)
- Sim, sou de Macau.
- Filo di quim?
- De Alberto Geraldes. A Cecília...
- Alberto filo di quim?
- Filho de Joaquim Caetaninho Geraldes.
- Caetaninho?... cunhecido.... Filo di Chano Geraldes?
- Não, Chano e Joaquim são filhos de Aquiliano de Sousa Geraldes.
- Aaaah... sábi-ia! (já sei!) Aquí-Lilí, genti di Apí-Mono, filo di Pé-Móle, sobrinho di Chica-Vara-Verdi! Genti di S. Lázaro, mé!
- Hmm... Pois...! A Cecília ...
- Mai sâm quim?! (quem é a sua mãe?)
- ...!

Podia continuar com o diálogo, mas julgo que ele é suficientemente ilustrativo, para aquilo que irei escrever.

A curiosidade de saber das origens de alguém que não conhecemos é comum a qualquer pessoa e corresponde a uma prática necessária e natural de qualquer comunidade. Muito especialmente, comunidades pequenas como a nossa, em que todos se conhecem, quer directa, quer indirectamente.

A este propósito, recordo-me dos saudosos tempos de Portugal, e em particular da primeira vez que fui passar o fim-de-semana à terra do meu colega, algures em Lamego. Segundo me explicou o Jorge, era sempre motivo de festa para a D. Gertrudes Conceição da Piedade, sua mãe, quando ele voltava à casa, pois haveria reunião de família e convívio com os amigos mais chegados. E, então, trazendo consigo um colega seu, o fim-de-semana foi um evento especial. O calor humano daquela casa, o trato com olhos nos olhos, o prazer de compartilhar o sentir enternecedor de família, traziam-me saudades tão grandes da Travessa do Paiva onde cresci e dos chás-gordos que a Família Espírito Santo todos os anos preparava no seu casarão, à Rua da Horta e Companhia, no tardoz das Ruínas de S. Paulo.

A hospitalidade e a generosa comida marcaram pontos na minha memória. Mas, o que particularmente me deleitou, foi apreciar o Jorge a explicar a sua proveniência, nas várias conversas que ia tendo com a boa gente da aldeia que íamos encontrando pelo caminho. Foi uma festa quando se soube que era filho do “inesquecível” cabo Piedade, pois daí começaram as pitorescas histórias em torno do falecido militar, estendendo-se a outros parentes que entretanto casaram-se com outros conhecidos. Uma autêntica tarde de reviver os tempos aureos do serviço militar, comum a tantos que já deixaram a aldeia. É claro, quanto a mim, o forasteiro, perguntaram apenas como é que um japónio (sic!) como eu, tinha um nome tão português e se na minha terra circulavam automóveis!

Em Macau, “filo-di-quim?” (de quem se é filho), é a expressão mais vulgar do Macaense e, curiosamente, das mais complexas. Não se trata apenas de uma simples pergunta sobre os pais de alguém, para a satisfação de uma curiosidade pessoal. Pois, se se souber à partida que o inquirido não é macaense, ou que os seus pais são estrangeiros, ou que tendo estado em Macau, nunca se misturaram com a “malta”, tal pergunta seria desprovida de qualquer interesse ou sentido. Como exemplo, ninguém se daria ao trabalho de perguntar “filo di quim”a um americano residente, nem a um português oriundo da República (o “metropolitano”) que estivesse aqui de passagem.

Ao questionar “filo di quim”, procura-se saber até que ponto o inquirido é da nossa gente ou com ela relacionado. Se os pais são de Macau, ou não sendo, se juntavam à “nôs-sa genti”. Uma espécie de exame oral de admissão à Comunidade.

No seio desta, com “Filo-di-quim?” vai-se mais longe: procura-se situar o inquirido (já qualificado de macaense), na complexa teia de relações de família e dos bairros em que as mesmas famílias se fixaram. E aí evoca-se o passado ocorrido em chão comum, referências a pessoas ou a episódios de uma vivência sedimentada de longos anos da nossa existência. Um nome puxa outro, o qual por sua vez leva a mencionar-se um terceiro, um quarto ou um quinto, cada um, um manancial de memórias e de histórias. Por outras palavras, se a Memória é a História de um povo, esta despretensiosa interrogação tem a ver com algo mais profundo de se ser Macaense – a sua alma.

Há quem diga que Macau continua a ser uma aldeia. Por mim, ainda bem! E que o seja por muitos anos. A simplicidade da vida, o conhecermos uns aos outros, pode ser enfadonho para muitos. Confesso qui muitas vezes gostaria de me sentir anónimo. Mas, pensando bem, somos o que somos, porque Macau é o que é. E levámos este salutar espírito de aldeia para todos os sítios em que se desdobra a Diáspora. Por isso não espanta ouvir-se um “filo di quim” em Califórnia, Sydney, S. Paulo, Vancouver, Toronto ou em Lisboa, com a mesma característica, dito num mesmo contexto.

Porém, Macau decididamente mudou. E encaminha-se a passos largos rumo à internacionalização. Novos elementos humanos interferem no panorama populacional tradicional deste território, fixando-se nele definitivamente. As pessoas já não se vêm, e muitas passaram a comunicar-se através de SMS ou MSN.

Nesta nova conjuntura, que significado passará a ter o nosso inocente “filo-di-quim"? Talvez uma pergunta em busca de uma afirmação de que não estamos sós. Mas isto melhor dirá o futuro.

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM no dia 07-03-2008)

QUO VADIS MACAENSE?

“Somos uma raça em extinção!”

Eis a resposta pronta que se desencanta da boca de qualquer filho da terra, a quem se pergunta sobre o futuro dos seus conterrâneos. Tal presságio não é actual, pois remonta já dos tempos dos meus avós. Creio eu que os seus pais também já ditavam a mesma sina a esta minúscula comunidade tão singelamente complexa que é a dos Macaenses.

No entanto, por ironia ou não, quis a Providência rumar contra os sábios prognósticos dos nossos antepassados e dos ilustres contemporâneos, “castigando-nos” com mais e mais anos de sobrevivência, adiando sine die essa nossa fatalidade.

Creio que a nossa obstinação em permanecer vivos tem muito a ver com o “milagre” de Macau. De facto, com quatro séculos e meio de História, um território tão minúsculo no Mundo, como é o nosso, passando por tantas peripécias e incidentes, despido de recursos naturais e de qualquer peso político, completamente à mercê da vontade e caprichos de reis, imperadores e de tantos outros governantes, que nunca o conheceram, Macau foi e é um milagre!

Explico-me.

Se naquela manhã de 24 de Junho de 1622, o padre Rho, não tivesse acordado com a pontaria certeira com que Deus lhe teria abençoado, permitindo-lhe desferir um golpe decisivo na logística invasora holandesa, Macau, provavelmente, ter-se-ia transformado numa Malaca, e nós teríamos formado o Portuguese Settlement (quem sabe!) nas bandas do Patâne. Ou então, muitos de nós estaríamos agora algures em Amesterdão, com familiares em Java ou nas Caraíbas. Não haveria Silvas, nem Gomes, nem Mendonças, mas Van der Mesick, De Blood ou Rudgers!

Não vamos para tão longe. Detenhamo-nos no tempo mais próximo.

A implantação da República da China, em 1911, marcada com inflamados discursos anticolonialistas de Sun Yat Zen, fazia prever o fim de Macau e naturalmente o dos seus filhos. Mas, a conjuntura sócio-política de que emergia a nova Nação, aliada ao pragmatismo chinês, não favorecia a expurga das colónias estrangeiras do seu território. O adiamento da retomada de Macau impôs-se, o status quo foi decretado e o Macaense continuou, como novas famílias se criaram.

Macau, durante a Guerra do Pacífico, foi o único ponto neutro, em todo o Sudeste Asiático, dilacerado pelas balas e obuses das partes beligerantes, tudo por causa de uma decisão política ditada a dezoito mil quilómetros de distância, sobre a neutralidade de Portugal, por alguém que nunca viu o Ultramar. Não vale a pena especular o que teria sido de Macau, se Salazar tivesse optado por uma das partes...

A vitória em 1949 do Partido Comunista Chinês, com a subsequente fundação da República Popular da China e depois os incidentes das Portas do Cerco no início da década de 50 do século XX, veio a renovar a ansiedade do macaense. Fazer malas ou ficar, eis as questões excruciantes que se voltavam a colocar. Mais uma vez, a sorte brinca com a gente: Macau e Hong Kong são consideradas “as únicas janelas para o Mundo” desta novíssima China, ainda não reconhecida pela comunidade internacional. O status quo é novamente uma necessidade imperiosa.

Mas a experiência mais marcante nesta encruzilhada de Macau e os Macaenses, teria sido o episódio de “1,2,3” no âmbito da Revolução Cultural, em Dezembro de 1966. Portugal estava a recuperar-se do abalo provocado pela queda da “India Portuguesa” e, ao tempo, estava mais centrado na Guerra Colonial. Como não teria a Comunidade sentido a solidão e o abandono? Lembro-me dos dias tumultuosos desse ano, em que a minha mãe, em pânico, obrigou-nos, eu e os meus irmãos, a calçar meias, onde ela escondia notas de dinheiro, para que pudéssemos contar com algo que nos sustentasse, em caso de debandada geral. Meu pai mais taciturno, apaziguava-nos com palavras de conforto, aparentemente desprezando a neura da minha mãe. Contudo, perante um cenário de possível alteração radical das nossas vidas, não havia decerto macaense que não pusesse seriamente a hipótese de deixar a sua terra. E ele não era excepção. Muito boa gente, efectivamente, mudou-se para outras paragens. O “fim da nossa raça” era dado como certo!

Contudo, anos passaram e o Hotel Lisboa inaugurava-se. A nova Ordem instalava-se definitivamente em Macau. Parte significativa da sua força laboral provinha da Comunidade, devido ao facto de esta dominar com fluência, não só o português, mas também, sobretudo, o cantonense e o inglês. Macaenses, contrariando a imagem-regra do funcionário público, eram vistos a servirem no Restaurante “Noite e Dia” e no Casino Lisboa como “croupiers”.
A paz de alma volta reinar, mas não por muito tempo.

O 25 de Abril vem modificar a visão que se tem de Portugal no Mundo. Afinal a “Grande Família” não correspondia ao que os livros de escola insistentemente indicavam. E Salazar não fazia parte da Santíssima Trindade! Ninguém imaginava que alguém do nosso lado pudesse encetar conversações com a R. P. China sobre a “descolonização” de Macau. Mas tal aconteceu, e os nervos voltaram. A mão de sossego vem da própria China: a questão de Macau “será abordada em momento oportuno”.

Em 1979, as relações diplomáticas entre Portugal e China restabeleciam-se. A questão de Macau obtinha consonância de ambas as partes e, em 1987, assinava-se a Declaração Conjunta. Em doze anos, assistimos tantos acontecimentos, mas um merece enfoque especial: o processo de integração dos funcionários nos quadros administravos de Portugal. Pela primeira vez, o macaense é confrontado com uma decisão a ser tomada e manifestada através de um processo administrativo, escolhendo entre ficar ou integrar-se em Portugal. Ficar ou não, eis o binómio torturante, o autêntico papão dos Macaenses. As opiniões dividiam-se, debates acumulavam-se. Para os mais pessimistas, ou os autoproclamados realistas, não existia dúvida alguma: este é realmente o fim da malta!

Em 1999, o handover torna-se realidade. Para muitos, o Macaense acabou naquela data que foi apelidada de fatídica. O saudoso Adé dos Santos Ferreira, previa para ela, um dia cinzento e de pranto, num dos poemas em patuá mais sentidos que escrevera dez anos antes.

Antevia-se o pior para os que ficaram. Contas antigas por ajustar, rancores velhos não vingados e outras coisas menos encorajadoras, tudo isso fazia parte de um espectro tenebroso que se lhes reservava. No entanto nada disso sucedeu. O Macaense continuou na mesma, nem mais, nem menos chapado como sempre fora. De novo, a ironia do Destino, faz valer das suas: quer se goste dele ou não, ele faz a diferença que a China quer para Macau. Ele é a dimensão humana que faz desta pequena terra algo nada visto em toda a China. Ele é o elo de ligação e o elemento útil da aproximação com o mundo lusófono, espaço tão querido para esta moderna China.

Mas que temos nós de especial? Qui sábi!, como se diria em patuá.

Todos somos filhos da terra, com as melhores qualidades e os piores defeitos. Somos descontraídos, com o chiste na ponta da língua e amamos uma boa tagarela, temperada com discussões violentas. Queixamo-nos de tudo e de todos, mas somos altamente adaptáveis. Somos tão bons compinchas da pinga, do bridge, do hóquei, do majong, do poker e dos piores jogos de fortuna e azar, como também facilmente resolvemos os nossos assuntos à bofetada. Autênticos “atâis do caraças!” com alma nobre e gostos palacianos. Adoramos mulheres, em todos os sentidos e somos possessivos. Irmãos de coração, mas também mauzinhos e desconfiados quando for caso disso. O Maquista chapado combina o fogoso prazer latino da vida, com o arguto instinto oriental de se relacionar com o próximo. Todo este cha-chau-la-lau, acompanhado de uma secular tradição de contactos com outras gentes de outras terras, faz de nós legítimos cidadãos do Mundo.

Somos, sim, uma raça única e em extinção adiada. Comungo esta noção, como fizeram os meus avós, o meu pai, como farão as minhas filhas, os meus netos, bisnetos e resto da prole que se lhes seguir, quando chegar o seu tempo de se interrogarem sobre o seu futuro. Mas, longe de se traduzir em puro derrotismo, ela é uma ideia-força que nos leva a valorizarmo-nos e a defendermo-nos. Uma ideia que nos leva à nossa própria preservação.

Sim, nós temos que nos preservar. É que a diferença entre nós e os orangotangos de Bornéu, está em que, pelo menos, estes são objecto de protecção especial. São tão queridos que existem especialistas no seu habitat, que uma gripezita sua é susceptível de causar consternação no mundo científico. E são tão apetecidos, que existem caçadores especializados no seu abate, coleccionadores que pagariam fortunas de casino, por uma cabeça, um par de mãos ou dedos de pé. Ora, não estou a ver, nem a mesma sorte, nem a mesma honra para a nossa gente!
A nossa condição resume-se no seguinte: é em vão escamotearmo-nos com outras identidades, ou somos Macau-filo de pleno, ou não somos ninguém.

Sâm assi-ia!
(Publicado no Jornal Tribuna de Macau em 22-02-2008)