Thursday, March 27, 2008

VÔS QUI NÓMI?

O telefona toca.
- ­Hello? Sâm quím?
- Bô-tarde, Gege, por favor.
- Vôs sâm quím?
- António...
- António, quim?
- António Rosário...
- Qual António Rosário?
- António Procópio Menezes da Costa Salvaterra dos Passos Martins do Rosário!!
- Cuza??
- Pofa! “Boi-Preto” mé!
- Ahhh...Vôs! ... Pai tá bom?!
- ...!


O nome de um indivíduo é prova cabal de que o homem vive em sociedade. De facto, ele só tem sentido ou utilidade, enquanto meio para que outros nos possam identificar. Por outras palavras, o nome é algo para o “outro ver”.

Contudo, é comum ter um indivíduo vários modos de se referir. A diversidade de situações interpessoais, a infinita teia de relações sociais e a complexa interacção em que nos envolvemos no trato com próximo, fazem de nós objecto de diversas qualificações, culminando com identificações várias. E não raro é que entre estas, umas são mais conhecidas que outras. Aos olhos dos outros, somos bem distintos do que efectivamente julgamos ser. Por isso, o modo como somos vistos no nosso meio, longe de depender da nossa exclusiva vontade, é o que resulta da nossa vivência com outros.

Para alguns, os nomes com que nós nos baptizámos têm apenas a função de nos relacionar ao Estado, enquanto ente organizador da identificação dos seus cidadãos, ou a todos os outros que se situem fora das fronteiras do nosso meio. Com algum exagero, é certo. Porém, bem vistas as coisas no contexto de Macau, tal convicção não dista da realidade. Somos efectivamente apelidados de formas tão díspares, a ponto de ignorarmos, sem querermos, a chamada de quem nos trate pelo nosso nome “oficial”.

Assim, para a frustração dos nossos pais, os nomes que nos escolheram - após longas consultas aos nossos avós, aos tios, aos primos, ao mestre-adivinho, ao quiromante, ao pároco, à lista onomástica oficial, às páginas amarelas e sabe-se lá a quem mais, com a paciência que só Deus compreenderia - muitas vezes acabam por se reduzirem a meras palavras que constam do nosso bilhete de identidade, do passaporte ou da carta de condução. Relegado para um plano inferior, sem uso corrente, sem vida.

Ora, isto acontece quando o nome oficial é suplantado no seu emprego normal por outros identificativos. São eles que passarão a tomar conta da nossa identidade para o resto da vida, sendo o meio mais idóneo para nos referir e a resposta mais apropriada para a pergunta “filo di quím?”.

Hipocorísticos e alcunhas, são, portanto, formas sucedâneas de identificação de um indivíduo inserido num meio social restrito, em que todos se conhecem, ou, pelo menos, ninguém é estranho a ninguém. No caso de Macau, tal não foi excepção. Porém, nem sempre é fácil a sua distinção. Cheguei a fazer uma compilação deles e confesso ter sentido alguma dificuldade em destrinçá-los.

Começando pelos primeiros, por definição, eles resultam de círculos sociais mais pequenos, mormente familiares. Em Macau, chamavam-se nómi-di-casa ou nómi-di-família, sugerindo o ambiente de ternura e de afecto como é o lar onde crescemos. São empregues no diminutivo, por se tratarem de nomes dados a crianças de tenra idade, e por isso mesmo também foram conhecidos por nómi-dóci, designação naturalmente inspirada na doçura inocente e infantil, própria da idade em referência. Em muitos casos, nasceram de corruptelas cometidas pelas amas chinesas que as cuidavam, sem para tal terem conhecimentos da língua portuguesa. Com o tempo, popularizaram-se no seio da Comunidade e entraram no uso vulgar de todos. O que me fez recordar um episódio contado por uma pessoa amiga, em que ela teria começado por tratar o seu recém-nascido filho por A-Chai, enquanto se decidia qual seu nome de baptismo. Sem surpresa, o senhor é hoje conhecido por aquele, e não pelo que passou pela água benta. Nomes como Atútu, Bibico, Calim, Ila, Ito, Mana-Chai, Mui-Mui, Nonó, Púchi, Quinho, Taco, Zinho acompanham a vida inteira dos seus donos, cada um com a sua distinção e individualidade.

Adé dos Santos Ferreira foi conhecido como o Poeta da Língu Maquista. Zezé Rosário, o antigo Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Macau. O saudoso otorrinolaringologista, alto e de cabelos de cor de platina chamava-se Dr. Chacha Luz. Maco Amante, Mujica Silvestre, A-Mó Rocha, os irmãos Mano, Aling e Dado Siqueira, da Tuna Esperança e outros, fizeram do bandolim o instrumento emblemático e, por sinal, o mais nostálgico das Tunas de Macau.

O ilustre deputado macaense, indigitado para a Conferência Política Consultiva do Povo Chinês dá-se pelo nome de Neco Alves. Chúchu Xavier Ritchie foi antiga Presidente da Assembleia Legislativa de Macau. Os seus irmãos são Nico, Zinha, Manú e Édo Xavier. Chai-Chai Rodrigues dirige os destinos da APIM e do Conselho das Comunidades Macaenses. À testa do Instituto dos Estudos Europeus está o ex-Presidente do extinto Leal Senado, Zito Sales Marques. A Escola Portuguesa de Macau, tem Didí Silva como sua Directora e Jimmy Rangel, ex-Secretário Adjunto durante a Administração Portuguesa, é o homem do Instituto Internacional de Macau. Ninho e Zeca Azedo, são ilustres juristas, sendo um, ex-Presidente da Associação dos Advogados de Macau, e outro, Juiz do Tribunal de Segunda Instância. Peca Jorge publicou com o seu marido os famosos e há muito esgotados Álbuns de Macau. Api Rosário, A-Lou Airosa, Lélé Rosa Duque, dos lendários Thunders, fizeram “Macau Terra Minha”, o hino saudosista dos Macaenses. Totó Branco é Presidente da Direcção da Casa de Macau em S. Paulo. Na Banca, marcaram presença Léni Costa e Pom-Pom Magalhães, assim como no Hóquei estiveram Édu e Dico Cordeiro e Jozico Rocha, entre tantos outros.

Néu-Néu Coelho, Nandinha Robarts, Chichóni, Charly e Tirita Santos Ferreira, Nano Silva; Gito Jesus; os irmãos Bicho, Coque e Ato Morais; Ricky, Doobee, Beto, Manel e Teri Nolasco; Abíbe, Achúchi e Meno Airosa; Géni, Édi e Jóni Nascimento. É infindável o rol desses nomes. Mas não é esse o objectivo deste artigo, senão apenas retratar esta face tão pitoresca da Comunidade.

Quanto ao segundo grupo, não tenho a certeza se existe ou tenha existido alguma designação macaense para alcunha. Não obstante, já ouvi expressões como nómi-chiste ou nómi-bobo ou mesmo nómi di rua, com esse significado. Que me perdoem os puristas, mas serão estes que irei utilizar para o presente artigo.

Com a alcunha estamos bem fora de casa, transpondo as fronteiras da família. Situamo-nos agora na escola, na rua, no bairro, no serviço, com os amigos e colegas. Se o nómi-di-casa traduz aquela ternura de um meio familiar donde brotou, o nómi-di-rua é mordaz nas suas manifestações. O designado encontrar-se-ia numa situação de inelutabilidade e de resignação, à mercê do escárnio cruel do meio. Como uma tatuagem gravada na sua pele, também ele acompanhará o contemplado até à sua morte.

Sem embargo, é da alcunha que se extrai o que há de mais rico da imaginação humorística macaense. O nómi-di-rua não só consiste num epíteto, pois também encerra uma vivência, narra um episódio parado no tempo, uma autêntica fotografia de um momento na vida, acima de tudo, imbuída de comicidade brejeira. E muitas vezes traduzem-se em ressábios do povo contra os mais vaidosos e abusadores, sendo a alcunha um instrumento nivelador de eventuais disparidades sociais.

Calinho Tau Kai (tau kai = roubar galinhas), notabilizou-se por ser um descarado papa-frangos. Cemitério Vong Hin, o endiabrado apaixonado pela pesca que ia ao cemitério caçar a suculenta minhoca amarelada das covas (“vong hin”) para isco. A canção italiana popular imortalizada por Emilio Pericoli, valeu ao seu ferrenho fã macaense o nome de Al-Di-La. Aquela mulher de nádegas avantajadas que lhe impunham um bamboleante andar pachorento, ganhou o nome de Bombordo-Estibordo. O andar cadenciado pendendo o corpo para a esquerda e para a direita herdou ao seu dono a designação de Pêndulo. E o Esqueleto deambulava pelas ruas de Macau como um saco andante de ossos. O campeão da modalidade orgulhava-se em largar trinta e seis puns (peidos) numa assentada, por isso Tira-Pum foi como se conheceu. O seu semblante inexpressivo, mesmo em ocasiões de grande euforia, deu-lhe a fama de Cara-de-Aço. Quarenta-e-seis, foi o nome que lhe atribuíram, por ser a medida dos seus magníficos peitorais. Mas, Tai-Nin-Po (literalmente, “Mamas Grandes”), não se inferiorizava em números e Chili-Ponta-Céu, tinha os seus seios bem arrebitados.

Madame Machado era a professora de Francês e a incorrecta pronúncia da palavra gaulesa “Tableau”, valeu ao aluno o nome de Tabléu ou Tabliáu. Madre era o efeminado e Half-Man, a mulher máscula. Os gloriosos feitos em noites de amor deram ao Língua-de-ferro, o título que merecia. E a Shit-Man calhou parar a sua motorizada no sítio e no momento em que rebentava o cano de esgoto. Radar cheirava a notícia à distância, enquanto que Catavento virava-se conforme a conveniência dos ventos.

Cú-de-Pato, Cú-de-Chumbo, Pé-Grosso e Pé-de-Bambú. Bebé-Gordo, Bebé-Preto, Bebé-Rato. Gafanhoto, Mosquito, Piolho e Chong-Mei-Mei (Libelinha). Bôi, Bôi-Apis, Pai-de-Bôi, Olho-de-Bôi. Bexigoso-Em-Dois-Segundos, Cindarella-Stepsister e Tap-Siac-Sisters. Jacaré, Mula, Mamute, Macaco. E mais tantos outros, bem demonstrativos do fino mas cáustico sentido de humor dos Macaenses.

A bem ou a mal, as famílias também foram alcunhadas. Assim, Mendonçada para os Mendonças, Rosalhada para os Rosários, Nolascada para os Nolascos, Pancraciada para os Silvas, descendentes de Júlio Pancrácio. Num dia, numa das antigas lojas de mouros, de Macau de outros tempos, três irmãs apreciavam chapéus. Uma delas pergunta a outra se o que tinha nas mãos era bonito, ao que lhe foi respondido: “Very Good...un-pôco chipido!”(Muito bonito, mas um pouco achatado). Daí Very-Good-Chipido, que se estendeu para o resto da prole. Aos Senna Fernandes já chamaram tantos nomes, sendo um deles, segundo me contaram, Leng Tong Kuang (ferro velho!), decerto uma informação interessante por se confirmar! De irmãos, tivemos, entre outros, Tai-Capí (o grande Capí) e Capi-Chai (pequeno Capí); Duro-duro e Móli-Móli.

Em Macau existe um nome polivalente, que de modo algum eu deixaria escapar: Chico. Não é só diminutivo de Francisco, nem se resume apenas ao sinónimo de imbecil, como muitas vezes tal é entendido. Chico é acima de tudo o homem vulgar do povo, com o orgulho da sua simplicidade. Mas Chico também é um complemento de alcunhas. Chico-Micróbio, andava obececado com a ideia de que tudo estava infestado de vírus e bactérias. Chico-Mente usava – exageradamente! - o advérbio de modo, e Chico-Direi começava as frases com “como direi...”. Chico-Rapariga, Chico-Madame, Chico-Menina, irmãos Chico-Mama e Chico-Teta, Chico-Aflito, Chico-Preto, Chico-Bate-Pé, Chico-Pé-Pesado e tantos outros Chicos existiram, conforme a ocasião, a história de fundo, ao sabor do génio chistoso do Macau-Filo.

Hipocorísticos e alcunhas macaenses, nómi-dóci e nómi-chiste, ambos traduzindo uma realidade: uma plurifacetada comunidade com um passado rico em experiências e vicissitudes da vida, neste Macau fustigado por tantos tufões de mudança ao longo da sua História multissecular. E quanto mais penso neles, mais nostalgia sinto pela minha “aldeia”. Porém, os tempos são outros, há que se adaptar a eles. Provavelmente continuarão a nascer mais Chicos ou mais Necos, sem ninguém dar por isso, neste Macau cada vez mais impessoal. Mais anónimo. Mais ... cidade.

Antes de terminar não podia deixar de fazer uma breve referência ao seguinte.

Após o handover, surge em Macau um “tertium genus”. Um tipo de nome nunca antes visto. Ao invés dos outros que nasceram por consenso social, este é imposto. Um tipo de nome que se estende a toda a população, não se confinando à Comunidade. São os nómi-co-vírgula, nómi-di-BIR ou simplesmente nómi-contrario, à falta de melhores designações (!). Pela primeira vez em Macau, uma vírgula aparece nos nossos nomes, sejam eles quais forem, em nome da uniformização do sistema de identificação dos residentes de Macau. Isso não é novidade, pois já em Hong Kong isso acontece aos nomes ocidentais. O que já espanta, e para o qual não existe uma razão mais plausível, é que o raio da vírgula aparece também nos nomes chineses. Uma uniformização até às últimas consequências, portanto!

Passei a ser Senna Fernandes, Henrique Miguel Rodrigues de. Oficialmente, já não sei se sou da família do meu irmão, que passou a ser Rodrigues de Senna Fernandes, Filipe Augusto. Um primo meu tem o seu a começar por Fernandes, e outro por De...! Agora, se eu quisesse identificar-me com o meu nome de baptismo, teria que o fazer por abonação de pessoas idóneas ou exibir competente certificação, pois o notário ou qualquer funcionário não terá qualquer obrigação funcional de saber mais nada, para além do que consta do meu BIR. Nem quero imaginar que nome teria o meu amigo de Sevilha Hernán Enrique Cuevas Y Castelón Rubia se optasse por ser residente em Macau.

Mas, pus-me a pensar, para quê barafustar? Se calhar nós é que temos a culpa de termos nomes compridos que não cabem nas bases de dados! Culpa por complicá-los, conservando os apelidos dos nossos avós e bisavós. Culpa por não termos a tradição dos apelidos precederem os nomes próprios. Culpa por se ter sedimentado ao longo de séculos, uma prática administrativa que diferenciasse tipos de nomes culturalmente diferentes. Resignemo-nos. Já temos muita sorte de não nos imporem o ponto-e-vírgula! Afinal sempre se confirma o que atrás se disse: o nome é o que outro diz que deve ser.

Se agora me perguntarem “Vôs qui nómi”? Provavelmente responderia “Qui sábi”!

Sâm assi-ia!
(Publicado no JTM em 26-03-2008)

Saturday, March 15, 2008

FILO DI QUÍM?

- Dona Ména, bom dia!
- Bô-dia, como tá vai? Cuza querê? (Bom dia, como vai? Que quer você?)
- Bem obrigado, sou António, vim buscar a sua neta Cecília...
- António, qui bunitéza... Macau-filo? (António, que simpático... de Macau?)
- Sim, sou de Macau.
- Filo di quim?
- De Alberto Geraldes. A Cecília...
- Alberto filo di quim?
- Filho de Joaquim Caetaninho Geraldes.
- Caetaninho?... cunhecido.... Filo di Chano Geraldes?
- Não, Chano e Joaquim são filhos de Aquiliano de Sousa Geraldes.
- Aaaah... sábi-ia! (já sei!) Aquí-Lilí, genti di Apí-Mono, filo di Pé-Móle, sobrinho di Chica-Vara-Verdi! Genti di S. Lázaro, mé!
- Hmm... Pois...! A Cecília ...
- Mai sâm quim?! (quem é a sua mãe?)
- ...!

Podia continuar com o diálogo, mas julgo que ele é suficientemente ilustrativo, para aquilo que irei escrever.

A curiosidade de saber das origens de alguém que não conhecemos é comum a qualquer pessoa e corresponde a uma prática necessária e natural de qualquer comunidade. Muito especialmente, comunidades pequenas como a nossa, em que todos se conhecem, quer directa, quer indirectamente.

A este propósito, recordo-me dos saudosos tempos de Portugal, e em particular da primeira vez que fui passar o fim-de-semana à terra do meu colega, algures em Lamego. Segundo me explicou o Jorge, era sempre motivo de festa para a D. Gertrudes Conceição da Piedade, sua mãe, quando ele voltava à casa, pois haveria reunião de família e convívio com os amigos mais chegados. E, então, trazendo consigo um colega seu, o fim-de-semana foi um evento especial. O calor humano daquela casa, o trato com olhos nos olhos, o prazer de compartilhar o sentir enternecedor de família, traziam-me saudades tão grandes da Travessa do Paiva onde cresci e dos chás-gordos que a Família Espírito Santo todos os anos preparava no seu casarão, à Rua da Horta e Companhia, no tardoz das Ruínas de S. Paulo.

A hospitalidade e a generosa comida marcaram pontos na minha memória. Mas, o que particularmente me deleitou, foi apreciar o Jorge a explicar a sua proveniência, nas várias conversas que ia tendo com a boa gente da aldeia que íamos encontrando pelo caminho. Foi uma festa quando se soube que era filho do “inesquecível” cabo Piedade, pois daí começaram as pitorescas histórias em torno do falecido militar, estendendo-se a outros parentes que entretanto casaram-se com outros conhecidos. Uma autêntica tarde de reviver os tempos aureos do serviço militar, comum a tantos que já deixaram a aldeia. É claro, quanto a mim, o forasteiro, perguntaram apenas como é que um japónio (sic!) como eu, tinha um nome tão português e se na minha terra circulavam automóveis!

Em Macau, “filo-di-quim?” (de quem se é filho), é a expressão mais vulgar do Macaense e, curiosamente, das mais complexas. Não se trata apenas de uma simples pergunta sobre os pais de alguém, para a satisfação de uma curiosidade pessoal. Pois, se se souber à partida que o inquirido não é macaense, ou que os seus pais são estrangeiros, ou que tendo estado em Macau, nunca se misturaram com a “malta”, tal pergunta seria desprovida de qualquer interesse ou sentido. Como exemplo, ninguém se daria ao trabalho de perguntar “filo di quim”a um americano residente, nem a um português oriundo da República (o “metropolitano”) que estivesse aqui de passagem.

Ao questionar “filo di quim”, procura-se saber até que ponto o inquirido é da nossa gente ou com ela relacionado. Se os pais são de Macau, ou não sendo, se juntavam à “nôs-sa genti”. Uma espécie de exame oral de admissão à Comunidade.

No seio desta, com “Filo-di-quim?” vai-se mais longe: procura-se situar o inquirido (já qualificado de macaense), na complexa teia de relações de família e dos bairros em que as mesmas famílias se fixaram. E aí evoca-se o passado ocorrido em chão comum, referências a pessoas ou a episódios de uma vivência sedimentada de longos anos da nossa existência. Um nome puxa outro, o qual por sua vez leva a mencionar-se um terceiro, um quarto ou um quinto, cada um, um manancial de memórias e de histórias. Por outras palavras, se a Memória é a História de um povo, esta despretensiosa interrogação tem a ver com algo mais profundo de se ser Macaense – a sua alma.

Há quem diga que Macau continua a ser uma aldeia. Por mim, ainda bem! E que o seja por muitos anos. A simplicidade da vida, o conhecermos uns aos outros, pode ser enfadonho para muitos. Confesso qui muitas vezes gostaria de me sentir anónimo. Mas, pensando bem, somos o que somos, porque Macau é o que é. E levámos este salutar espírito de aldeia para todos os sítios em que se desdobra a Diáspora. Por isso não espanta ouvir-se um “filo di quim” em Califórnia, Sydney, S. Paulo, Vancouver, Toronto ou em Lisboa, com a mesma característica, dito num mesmo contexto.

Porém, Macau decididamente mudou. E encaminha-se a passos largos rumo à internacionalização. Novos elementos humanos interferem no panorama populacional tradicional deste território, fixando-se nele definitivamente. As pessoas já não se vêm, e muitas passaram a comunicar-se através de SMS ou MSN.

Nesta nova conjuntura, que significado passará a ter o nosso inocente “filo-di-quim"? Talvez uma pergunta em busca de uma afirmação de que não estamos sós. Mas isto melhor dirá o futuro.

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM no dia 07-03-2008)

QUO VADIS MACAENSE?

“Somos uma raça em extinção!”

Eis a resposta pronta que se desencanta da boca de qualquer filho da terra, a quem se pergunta sobre o futuro dos seus conterrâneos. Tal presságio não é actual, pois remonta já dos tempos dos meus avós. Creio eu que os seus pais também já ditavam a mesma sina a esta minúscula comunidade tão singelamente complexa que é a dos Macaenses.

No entanto, por ironia ou não, quis a Providência rumar contra os sábios prognósticos dos nossos antepassados e dos ilustres contemporâneos, “castigando-nos” com mais e mais anos de sobrevivência, adiando sine die essa nossa fatalidade.

Creio que a nossa obstinação em permanecer vivos tem muito a ver com o “milagre” de Macau. De facto, com quatro séculos e meio de História, um território tão minúsculo no Mundo, como é o nosso, passando por tantas peripécias e incidentes, despido de recursos naturais e de qualquer peso político, completamente à mercê da vontade e caprichos de reis, imperadores e de tantos outros governantes, que nunca o conheceram, Macau foi e é um milagre!

Explico-me.

Se naquela manhã de 24 de Junho de 1622, o padre Rho, não tivesse acordado com a pontaria certeira com que Deus lhe teria abençoado, permitindo-lhe desferir um golpe decisivo na logística invasora holandesa, Macau, provavelmente, ter-se-ia transformado numa Malaca, e nós teríamos formado o Portuguese Settlement (quem sabe!) nas bandas do Patâne. Ou então, muitos de nós estaríamos agora algures em Amesterdão, com familiares em Java ou nas Caraíbas. Não haveria Silvas, nem Gomes, nem Mendonças, mas Van der Mesick, De Blood ou Rudgers!

Não vamos para tão longe. Detenhamo-nos no tempo mais próximo.

A implantação da República da China, em 1911, marcada com inflamados discursos anticolonialistas de Sun Yat Zen, fazia prever o fim de Macau e naturalmente o dos seus filhos. Mas, a conjuntura sócio-política de que emergia a nova Nação, aliada ao pragmatismo chinês, não favorecia a expurga das colónias estrangeiras do seu território. O adiamento da retomada de Macau impôs-se, o status quo foi decretado e o Macaense continuou, como novas famílias se criaram.

Macau, durante a Guerra do Pacífico, foi o único ponto neutro, em todo o Sudeste Asiático, dilacerado pelas balas e obuses das partes beligerantes, tudo por causa de uma decisão política ditada a dezoito mil quilómetros de distância, sobre a neutralidade de Portugal, por alguém que nunca viu o Ultramar. Não vale a pena especular o que teria sido de Macau, se Salazar tivesse optado por uma das partes...

A vitória em 1949 do Partido Comunista Chinês, com a subsequente fundação da República Popular da China e depois os incidentes das Portas do Cerco no início da década de 50 do século XX, veio a renovar a ansiedade do macaense. Fazer malas ou ficar, eis as questões excruciantes que se voltavam a colocar. Mais uma vez, a sorte brinca com a gente: Macau e Hong Kong são consideradas “as únicas janelas para o Mundo” desta novíssima China, ainda não reconhecida pela comunidade internacional. O status quo é novamente uma necessidade imperiosa.

Mas a experiência mais marcante nesta encruzilhada de Macau e os Macaenses, teria sido o episódio de “1,2,3” no âmbito da Revolução Cultural, em Dezembro de 1966. Portugal estava a recuperar-se do abalo provocado pela queda da “India Portuguesa” e, ao tempo, estava mais centrado na Guerra Colonial. Como não teria a Comunidade sentido a solidão e o abandono? Lembro-me dos dias tumultuosos desse ano, em que a minha mãe, em pânico, obrigou-nos, eu e os meus irmãos, a calçar meias, onde ela escondia notas de dinheiro, para que pudéssemos contar com algo que nos sustentasse, em caso de debandada geral. Meu pai mais taciturno, apaziguava-nos com palavras de conforto, aparentemente desprezando a neura da minha mãe. Contudo, perante um cenário de possível alteração radical das nossas vidas, não havia decerto macaense que não pusesse seriamente a hipótese de deixar a sua terra. E ele não era excepção. Muito boa gente, efectivamente, mudou-se para outras paragens. O “fim da nossa raça” era dado como certo!

Contudo, anos passaram e o Hotel Lisboa inaugurava-se. A nova Ordem instalava-se definitivamente em Macau. Parte significativa da sua força laboral provinha da Comunidade, devido ao facto de esta dominar com fluência, não só o português, mas também, sobretudo, o cantonense e o inglês. Macaenses, contrariando a imagem-regra do funcionário público, eram vistos a servirem no Restaurante “Noite e Dia” e no Casino Lisboa como “croupiers”.
A paz de alma volta reinar, mas não por muito tempo.

O 25 de Abril vem modificar a visão que se tem de Portugal no Mundo. Afinal a “Grande Família” não correspondia ao que os livros de escola insistentemente indicavam. E Salazar não fazia parte da Santíssima Trindade! Ninguém imaginava que alguém do nosso lado pudesse encetar conversações com a R. P. China sobre a “descolonização” de Macau. Mas tal aconteceu, e os nervos voltaram. A mão de sossego vem da própria China: a questão de Macau “será abordada em momento oportuno”.

Em 1979, as relações diplomáticas entre Portugal e China restabeleciam-se. A questão de Macau obtinha consonância de ambas as partes e, em 1987, assinava-se a Declaração Conjunta. Em doze anos, assistimos tantos acontecimentos, mas um merece enfoque especial: o processo de integração dos funcionários nos quadros administravos de Portugal. Pela primeira vez, o macaense é confrontado com uma decisão a ser tomada e manifestada através de um processo administrativo, escolhendo entre ficar ou integrar-se em Portugal. Ficar ou não, eis o binómio torturante, o autêntico papão dos Macaenses. As opiniões dividiam-se, debates acumulavam-se. Para os mais pessimistas, ou os autoproclamados realistas, não existia dúvida alguma: este é realmente o fim da malta!

Em 1999, o handover torna-se realidade. Para muitos, o Macaense acabou naquela data que foi apelidada de fatídica. O saudoso Adé dos Santos Ferreira, previa para ela, um dia cinzento e de pranto, num dos poemas em patuá mais sentidos que escrevera dez anos antes.

Antevia-se o pior para os que ficaram. Contas antigas por ajustar, rancores velhos não vingados e outras coisas menos encorajadoras, tudo isso fazia parte de um espectro tenebroso que se lhes reservava. No entanto nada disso sucedeu. O Macaense continuou na mesma, nem mais, nem menos chapado como sempre fora. De novo, a ironia do Destino, faz valer das suas: quer se goste dele ou não, ele faz a diferença que a China quer para Macau. Ele é a dimensão humana que faz desta pequena terra algo nada visto em toda a China. Ele é o elo de ligação e o elemento útil da aproximação com o mundo lusófono, espaço tão querido para esta moderna China.

Mas que temos nós de especial? Qui sábi!, como se diria em patuá.

Todos somos filhos da terra, com as melhores qualidades e os piores defeitos. Somos descontraídos, com o chiste na ponta da língua e amamos uma boa tagarela, temperada com discussões violentas. Queixamo-nos de tudo e de todos, mas somos altamente adaptáveis. Somos tão bons compinchas da pinga, do bridge, do hóquei, do majong, do poker e dos piores jogos de fortuna e azar, como também facilmente resolvemos os nossos assuntos à bofetada. Autênticos “atâis do caraças!” com alma nobre e gostos palacianos. Adoramos mulheres, em todos os sentidos e somos possessivos. Irmãos de coração, mas também mauzinhos e desconfiados quando for caso disso. O Maquista chapado combina o fogoso prazer latino da vida, com o arguto instinto oriental de se relacionar com o próximo. Todo este cha-chau-la-lau, acompanhado de uma secular tradição de contactos com outras gentes de outras terras, faz de nós legítimos cidadãos do Mundo.

Somos, sim, uma raça única e em extinção adiada. Comungo esta noção, como fizeram os meus avós, o meu pai, como farão as minhas filhas, os meus netos, bisnetos e resto da prole que se lhes seguir, quando chegar o seu tempo de se interrogarem sobre o seu futuro. Mas, longe de se traduzir em puro derrotismo, ela é uma ideia-força que nos leva a valorizarmo-nos e a defendermo-nos. Uma ideia que nos leva à nossa própria preservação.

Sim, nós temos que nos preservar. É que a diferença entre nós e os orangotangos de Bornéu, está em que, pelo menos, estes são objecto de protecção especial. São tão queridos que existem especialistas no seu habitat, que uma gripezita sua é susceptível de causar consternação no mundo científico. E são tão apetecidos, que existem caçadores especializados no seu abate, coleccionadores que pagariam fortunas de casino, por uma cabeça, um par de mãos ou dedos de pé. Ora, não estou a ver, nem a mesma sorte, nem a mesma honra para a nossa gente!
A nossa condição resume-se no seguinte: é em vão escamotearmo-nos com outras identidades, ou somos Macau-filo de pleno, ou não somos ninguém.

Sâm assi-ia!
(Publicado no Jornal Tribuna de Macau em 22-02-2008)