Recentemente li
um artigo de opinião num diário local sobre o que seja “Macaense”. Embora em
alguns aspectos não concordasse com ela, gostei do que li porque vinha a
despertar algo que anda a fervilhar na alma de muitos de nós. Algo de mais
profundo, algo existencial.
O que está em causa não é tanto o tom de certo protesto
que o mesmo artigo pareceu imprimir, mas sim o âmago que o mesmo tocava e que
tanto respeita a todos nós Macaenses.
Era a propósito
do II Encontro dos Jovens Macaenses realizado no passado Abril, o qual
congregou alguns jovens locais e representantes juvenis das Casas de Macau da
Diáspora. Foi um evento bem comentado, em todos os sentidos, sobre o qual
opiniões mais díspares foram expressas, em conversas de café e tertúlias, quer
no mundo real, quer no virtual.
Para já, apoio o
espírito dos Encontros. É certo que nem sempre são organizados na forma do agrado de todos – como se tal
fosse possivel - , todavia aplaudo a iniciativa, pois para além da festa que os
eventos semelhantes implicam, há um lado simbólico a ter em conta: Macau é a
referência do Macaense e o retorno deste reforça os laços de pertença, a ideia
de Identidade e a Memória colectiva.
No caso dos
jovens, conhecer Macau como berço da sua cultura tem todo o significado.
Mas, volvendo-me
ao II Encontro, um dos aspectos que mais atenção causou foi que os jovens
oriundos da Diáspora, não nasceram cá e,
com a excepção dos vindos de Portugal e do Brasil, pouco ou nada
entendem da língua portuguesa.
A circunstância
referida não me choca, pois como se podia esperar de alguém que tenha passado
toda a sua vida fora do mundo lusófono pudesse fluir minimamente na língua de
Camões? Contudo, isso trouxe como consequência imediata, a discussão sobre se estaríamos
perante Macaenses ou não, e em caso positivo que Macaenses eles podiam ser, se
é que o conceito comporta gradações.
Esta questão -
falsa ou verdadeira, incómoda ou não em face de muitas atingíveis
sensibilidades – desperta algo que desde há muito se encontra entre nós como se
“caso não resolvido” se tratasse : quem somos nós.
Esta necessidade instintiva
de encontrar respostas, também se faz sentir na Internet, graças às redes
sociais, onde a troca de opiniões é aberta e pública, coisa que não se assistia
no seio da Comunidade até bem recentemente. Como exemplo, quem tiver a benção
dos seus administradores para vaguear pelo grupo da Facebook “Conversa Entre a
Malta”, pode assistir a vivos debates de ideias sobre quaisquer acontecimentos
do nosso burgo, desde a anedota do Joãozinho até à última asneira do autocarro
verde.
Ora, entre um
desses acesos debates figura a “questão macaense” constantemente à baila, como
se tratasse de um inconformado espírito errante, que assombra qualquer projecto
que se diz chapado do Macaense.
Falar de nós ou
sobre nós não é coisa que acontece ao de leve na Comunidade. Não nego, como é
óbvio, a importância de meritórios trabalhos de índole sociológica e
antropológica que foram produzidos sobre o Macaense, em que este é estudado sob
um prisma estático, como que dissecado com minúcia para se apurarem as suas
características mais “típicas”. Refiro-me sim a uma análise numa perspectiva
dinâmica sobre esse indivíduo que vemos todos os dias, no serviço, no café, na
rua, na boite, no restaurante, na Facebook, a quem chamamos da “Malta”. Quem
ele é, como e porque eu me ligo a ele. Onde ele se situa e para onde ele vai,
sobretudo nesta Macau tão cheia de modernidade mas tão já empobrecida no que
toca ao que é tipicamente seu.
Falar de nós
entre nós é assunto que curiosamente se evita. Talvez sejam as
susceptibilidades que não se querem ferir, as desavenças mal saradas do passado
que ameaçariam reacender-se, as desconfianças em relação ao seu proximo e as
retaliações que se temem. Enfim, verdades ou falácias que muitas vezes
preferimos obviar a bem da harmonia entre todos, numa imaginária paz comunitária. Afinal, somos poucos e
conhecemo-nos demasiadamente bem.
Não obstante, no
íntimo de cada um, todos sentem o incómodo do silêncio sobre coisas que nos
dizem respeito. Todos falam da necessidade de haver união, mas como fazê-lo sem ao menos olharmos com
olhos de ver o que nos pode unir? Quem somos nós, o que nos é comum, o que nos
liga no passado e que se mantém no nosso presente? Por que rumos a trilhar com
essa apregoada união?
E já que
estivémos a falar dos jovens e da nova geração de Macaenses, os supostos
continuadores da Comunidade, o que irão herdar se a actual geração não discute
o que deve ser discutido?
Não quero ser
alarmista, nem acredito na sina apocalíptica de 2012, mas “o que é ser-se
Macaense” deve merecer uma reflexão colectiva por ser fundamental para a nossa
sobrevivência enquanto Comunidade. É verdade que muitos povos sobreviveram sem
um debate de questões da natureza que acabo de referir. Mas também é verdade
que assim aconteceu porque o contexto social ou político em que os mesmos povos
se inseriram, exigiam uma forte coesão como condição sine qua non da sua exisência.
Em Macau, ao
invés, estamos bem instalados. O Macaense graças à língua que domina, está à
vontade na sua terra, tem o seu ganha-pão, aproxima-se das gentes aqui
residentes, com quem se relaciona e se casa. O Macaense está em casa. Por isso
mesmo se deixa diluir e absorver facilmente. E num cenário menos bom, até se
perde.
Daí que faça todo
o sentido esta atitude de olharmos para nós proprios para ao menos sabermos o
estado actual da nossa situação. Já não bastam declarações públicas vertidas na
imprensa sobre a Comunidade que muitos de nós fizémos. A proposta agora é falar
sobre nós, entre nós.
Já me perguntaram
que objectivos pretenderia alcançar. A resposta é simples: se a Comunidade
reivindica afirmação, vai ter que ter uma noção o que ela é, quais os seus
contornos, com o que pode contar no futuro. E naturalmente não são outros,
senão nós, quem isso ditará.
Mas chegar-se-ia
a alguma conclusão? Decerto algumas. Todavia, admitiria ficarmos com as mesmas dúvidas com que
iniciámos. Isto não me preocupa, pois
não temo a falta de resposta. O que me aflige
é a apatia.
Sâm assi-ia!
(Publicada a versão mais compacta no Jornal Ponto Final, dia 07/06/2012)