Saturday, March 15, 2008

QUO VADIS MACAENSE?

“Somos uma raça em extinção!”

Eis a resposta pronta que se desencanta da boca de qualquer filho da terra, a quem se pergunta sobre o futuro dos seus conterrâneos. Tal presságio não é actual, pois remonta já dos tempos dos meus avós. Creio eu que os seus pais também já ditavam a mesma sina a esta minúscula comunidade tão singelamente complexa que é a dos Macaenses.

No entanto, por ironia ou não, quis a Providência rumar contra os sábios prognósticos dos nossos antepassados e dos ilustres contemporâneos, “castigando-nos” com mais e mais anos de sobrevivência, adiando sine die essa nossa fatalidade.

Creio que a nossa obstinação em permanecer vivos tem muito a ver com o “milagre” de Macau. De facto, com quatro séculos e meio de História, um território tão minúsculo no Mundo, como é o nosso, passando por tantas peripécias e incidentes, despido de recursos naturais e de qualquer peso político, completamente à mercê da vontade e caprichos de reis, imperadores e de tantos outros governantes, que nunca o conheceram, Macau foi e é um milagre!

Explico-me.

Se naquela manhã de 24 de Junho de 1622, o padre Rho, não tivesse acordado com a pontaria certeira com que Deus lhe teria abençoado, permitindo-lhe desferir um golpe decisivo na logística invasora holandesa, Macau, provavelmente, ter-se-ia transformado numa Malaca, e nós teríamos formado o Portuguese Settlement (quem sabe!) nas bandas do Patâne. Ou então, muitos de nós estaríamos agora algures em Amesterdão, com familiares em Java ou nas Caraíbas. Não haveria Silvas, nem Gomes, nem Mendonças, mas Van der Mesick, De Blood ou Rudgers!

Não vamos para tão longe. Detenhamo-nos no tempo mais próximo.

A implantação da República da China, em 1911, marcada com inflamados discursos anticolonialistas de Sun Yat Zen, fazia prever o fim de Macau e naturalmente o dos seus filhos. Mas, a conjuntura sócio-política de que emergia a nova Nação, aliada ao pragmatismo chinês, não favorecia a expurga das colónias estrangeiras do seu território. O adiamento da retomada de Macau impôs-se, o status quo foi decretado e o Macaense continuou, como novas famílias se criaram.

Macau, durante a Guerra do Pacífico, foi o único ponto neutro, em todo o Sudeste Asiático, dilacerado pelas balas e obuses das partes beligerantes, tudo por causa de uma decisão política ditada a dezoito mil quilómetros de distância, sobre a neutralidade de Portugal, por alguém que nunca viu o Ultramar. Não vale a pena especular o que teria sido de Macau, se Salazar tivesse optado por uma das partes...

A vitória em 1949 do Partido Comunista Chinês, com a subsequente fundação da República Popular da China e depois os incidentes das Portas do Cerco no início da década de 50 do século XX, veio a renovar a ansiedade do macaense. Fazer malas ou ficar, eis as questões excruciantes que se voltavam a colocar. Mais uma vez, a sorte brinca com a gente: Macau e Hong Kong são consideradas “as únicas janelas para o Mundo” desta novíssima China, ainda não reconhecida pela comunidade internacional. O status quo é novamente uma necessidade imperiosa.

Mas a experiência mais marcante nesta encruzilhada de Macau e os Macaenses, teria sido o episódio de “1,2,3” no âmbito da Revolução Cultural, em Dezembro de 1966. Portugal estava a recuperar-se do abalo provocado pela queda da “India Portuguesa” e, ao tempo, estava mais centrado na Guerra Colonial. Como não teria a Comunidade sentido a solidão e o abandono? Lembro-me dos dias tumultuosos desse ano, em que a minha mãe, em pânico, obrigou-nos, eu e os meus irmãos, a calçar meias, onde ela escondia notas de dinheiro, para que pudéssemos contar com algo que nos sustentasse, em caso de debandada geral. Meu pai mais taciturno, apaziguava-nos com palavras de conforto, aparentemente desprezando a neura da minha mãe. Contudo, perante um cenário de possível alteração radical das nossas vidas, não havia decerto macaense que não pusesse seriamente a hipótese de deixar a sua terra. E ele não era excepção. Muito boa gente, efectivamente, mudou-se para outras paragens. O “fim da nossa raça” era dado como certo!

Contudo, anos passaram e o Hotel Lisboa inaugurava-se. A nova Ordem instalava-se definitivamente em Macau. Parte significativa da sua força laboral provinha da Comunidade, devido ao facto de esta dominar com fluência, não só o português, mas também, sobretudo, o cantonense e o inglês. Macaenses, contrariando a imagem-regra do funcionário público, eram vistos a servirem no Restaurante “Noite e Dia” e no Casino Lisboa como “croupiers”.
A paz de alma volta reinar, mas não por muito tempo.

O 25 de Abril vem modificar a visão que se tem de Portugal no Mundo. Afinal a “Grande Família” não correspondia ao que os livros de escola insistentemente indicavam. E Salazar não fazia parte da Santíssima Trindade! Ninguém imaginava que alguém do nosso lado pudesse encetar conversações com a R. P. China sobre a “descolonização” de Macau. Mas tal aconteceu, e os nervos voltaram. A mão de sossego vem da própria China: a questão de Macau “será abordada em momento oportuno”.

Em 1979, as relações diplomáticas entre Portugal e China restabeleciam-se. A questão de Macau obtinha consonância de ambas as partes e, em 1987, assinava-se a Declaração Conjunta. Em doze anos, assistimos tantos acontecimentos, mas um merece enfoque especial: o processo de integração dos funcionários nos quadros administravos de Portugal. Pela primeira vez, o macaense é confrontado com uma decisão a ser tomada e manifestada através de um processo administrativo, escolhendo entre ficar ou integrar-se em Portugal. Ficar ou não, eis o binómio torturante, o autêntico papão dos Macaenses. As opiniões dividiam-se, debates acumulavam-se. Para os mais pessimistas, ou os autoproclamados realistas, não existia dúvida alguma: este é realmente o fim da malta!

Em 1999, o handover torna-se realidade. Para muitos, o Macaense acabou naquela data que foi apelidada de fatídica. O saudoso Adé dos Santos Ferreira, previa para ela, um dia cinzento e de pranto, num dos poemas em patuá mais sentidos que escrevera dez anos antes.

Antevia-se o pior para os que ficaram. Contas antigas por ajustar, rancores velhos não vingados e outras coisas menos encorajadoras, tudo isso fazia parte de um espectro tenebroso que se lhes reservava. No entanto nada disso sucedeu. O Macaense continuou na mesma, nem mais, nem menos chapado como sempre fora. De novo, a ironia do Destino, faz valer das suas: quer se goste dele ou não, ele faz a diferença que a China quer para Macau. Ele é a dimensão humana que faz desta pequena terra algo nada visto em toda a China. Ele é o elo de ligação e o elemento útil da aproximação com o mundo lusófono, espaço tão querido para esta moderna China.

Mas que temos nós de especial? Qui sábi!, como se diria em patuá.

Todos somos filhos da terra, com as melhores qualidades e os piores defeitos. Somos descontraídos, com o chiste na ponta da língua e amamos uma boa tagarela, temperada com discussões violentas. Queixamo-nos de tudo e de todos, mas somos altamente adaptáveis. Somos tão bons compinchas da pinga, do bridge, do hóquei, do majong, do poker e dos piores jogos de fortuna e azar, como também facilmente resolvemos os nossos assuntos à bofetada. Autênticos “atâis do caraças!” com alma nobre e gostos palacianos. Adoramos mulheres, em todos os sentidos e somos possessivos. Irmãos de coração, mas também mauzinhos e desconfiados quando for caso disso. O Maquista chapado combina o fogoso prazer latino da vida, com o arguto instinto oriental de se relacionar com o próximo. Todo este cha-chau-la-lau, acompanhado de uma secular tradição de contactos com outras gentes de outras terras, faz de nós legítimos cidadãos do Mundo.

Somos, sim, uma raça única e em extinção adiada. Comungo esta noção, como fizeram os meus avós, o meu pai, como farão as minhas filhas, os meus netos, bisnetos e resto da prole que se lhes seguir, quando chegar o seu tempo de se interrogarem sobre o seu futuro. Mas, longe de se traduzir em puro derrotismo, ela é uma ideia-força que nos leva a valorizarmo-nos e a defendermo-nos. Uma ideia que nos leva à nossa própria preservação.

Sim, nós temos que nos preservar. É que a diferença entre nós e os orangotangos de Bornéu, está em que, pelo menos, estes são objecto de protecção especial. São tão queridos que existem especialistas no seu habitat, que uma gripezita sua é susceptível de causar consternação no mundo científico. E são tão apetecidos, que existem caçadores especializados no seu abate, coleccionadores que pagariam fortunas de casino, por uma cabeça, um par de mãos ou dedos de pé. Ora, não estou a ver, nem a mesma sorte, nem a mesma honra para a nossa gente!
A nossa condição resume-se no seguinte: é em vão escamotearmo-nos com outras identidades, ou somos Macau-filo de pleno, ou não somos ninguém.

Sâm assi-ia!
(Publicado no Jornal Tribuna de Macau em 22-02-2008)

1 comment:

Unknown said...

Olá Miguel! Parabéns pelo blog! É uma excelente iniciativa e, claro, um enorme prazer ler as tuas palavras. Obrigada por partilhares as tuas reflexões!
Quanto aos macaenses... é bom ver que as vozes mais pessimistas não têm razão. Para quem não conhece, vale a pena ler a tese de Barnabas Hon Mun Koo: "The Survival of an endengered Species: the macanese in contemorary Macau" (Univ. of Western Sydney; 2004). Concordando-se ou não com tudo o que lá é dito, demonstra bem o que tu chamas "extinção adiada".
Fico à espera de mais... Até breve!