Friday, July 18, 2008

NOS-SA CULTURA II

A malfadada Língu Maquista

Todos nós temos recordações que nos marcam pela vida fora. No meu caso, recordo-me dos chás-gordos, aquele convívio saudável a começar pelo fim da tarde prolongando-se até cerca de 8 horas e meia, nesse Macau suave e sereno, de brandos costumes. Enquanto a miudagem corria pelos cantos da casa, os adultos conversavam despreocupadamente, queixando-se da incompreensão dos chefes, falavam dos feitos de Eusébio, saboreando a sopa-lacassá, o caldo inaugural desses serões da boa comezaina macaense.

Recordo-me sobretudo de estar num cantinho, discreto e bem quietinho, escutando as conversas que a minha avó Zete tinha com as suas amigas. A minha atenção era acrescida, pois riam-se sempre muito. Numa destas vezes, percebi que estavam a relatar a história de uma senhora que se queixava do marido surdo e vesgo. Exímias contadoras de histórias, trocavam olhares e a malícia no relato era manifesta. Enquanto uma falava, as outras aguardavam em silêncio, ávidas pelo desfecho do conto, com lábios trémulos, bochechas tensas, antecipando uma gargalhada dada como certa, numa cumplicidade que só as mulheres entendem. Era por mais evidente que a história, tal como as outras não eram contos da carochinha. Porém, a par da brejeirice, o que me despertava também atenção era uma língua estranha que todas falavam. Decerto não era chinês, nem português de escola. Soava antes a espanhol, mas algo me dizia que nem castelhano podia ser. Fosse como fosse, pouco me importava, o certo é que elas se divertiam à brava, à custa dessa lingua de estranhos.

Eis que uma vez, decididamente enchi-me de coragem, fui ter com a minha avó. Tentei reproduzir, perguntando-lhe o que era “Dále na sítio erado” (Deu-lhe no sítio errado) – a frase da queixosa mulher contra o marido surdo e vesgo, motivo da risota desbragada entre elas, naquele serão quente à Rua da Horta e Companhia. Qual não foi o meu espanto, isso não só me valeu uma pronta e severa descompostura, como ainda algo que ainda me assombra no presente momento: “Ou falas português ou não és ninguém”.

Julgo tratar-se de um pensamento geral então em voga e que se enraizou no espírito da Comunidade em Macau, que falar português era sinal de estatuto. Se entre as famílias de classe média e alta, isso não constituía problema, o mesmo não se podia dizer das mais humildes. O sistema educativo de então não só alimentava esta noção, como era implacável para quem fugisse à regra.

Se houve professores de português, dignos deste nome, como Lara Reis, Graciete Batalha, que vieram a Macau e honraram a sua missão altruísta de educar, procurando adaptar-se às nuances linguísticas da terra, outros houve que chegaram com espírito de missionários (ou mercenários) em terras de índios: em nome de Camões, condenavam e arrasavam tudo o que não correspondia a português padrão. A arrogância estampada no rosto de alguns e o sarcasmo na boca de outros, não deixavam saudades nenhumas ao aprendiz forçado da língua de Eça. Encarnavam antes uma prepotência imbecil que não só não aproveitava à Pátria Mãe, como a expunha a um ridículo injusto e cruel.

Um dos episódios que me contaram foi o do aluno macaense que levava constante reprimenda da altiva professora oriunda do norte de Portugal, pelos erros ortográficos que cometia:
- ‘Sôra, onde eu erei agora? Pôfa, eu já prestei tanta atenção já...e fiz o que ouvi da ‘sôra mé!
- És macaio e basta! Um surdo, um mentiruoso, um cabiêça de alhu-chuôcho! Quantas bezes não te disse que cabalos, bacas e bitêlos se escrebem com Bêa? Diz lá meu asno!? (sic!)”

Imagine-se quantos mais impropérios de que o desgraçado não fora alvo noutras situações.

Não restavam dúvidas de que o patuá não tinha condições de sobreviver fora da casa, fora do bairro, por ser motivo de chacota. Se até a forma correcta de se falar português em Macau, podia ser motivo de censura por não corresponder à sua matiz metropolitana, que mais chão poderia ter o nosso vetusto dialecto? De facto, poucos se atreveriam numa ocasião pública fazer uso da palavra em língua que não fosse o “razoábel”.

Falar (mal) português tornou-se um estigma para muitos. Não admira que a baixa nota na disciplina de Português entre os estudantes macaenses, tenha sido e continua a ser uma constante, em contraste com a das disciplinas de Matemática, Ciências ou Inglês.

O sistema sócio-cultural, implantado sobre o português, não restava espaço para o indigenato. O discurso exacerbado da Grande Família Portuguesa “que começava do Minho e terminava em Díli” fez eco em todo o Ultramar e alimentou a imagem do Herói Luso, começando com Viriato, passando por Afonso de Albuquerque e acabando com Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Mas, em contrapartida, ofuscou as manifestações culturais de índole regional. Se tal era o desígnio do Estado Novo, centralizador e redutor de quaisquer resquícios regionalistas, a Província de Macau pagou caro, pois sacrificou muito mais do que ganhou – se é que ganhou algo.

Patuá, era pois encarada como português mal falado, uma negação de estatuto, portanto. Não servia para o orgulho de se ser macaense, antes o denegria. Tal convicção existiu e perdurou entre nós, sendo muitas vezes a razão pela qual nos criticávamos uns aos outros.
- Ele é um incompetente.
- Porquê?
- Nem falar português sabe!


Teria sido assunto para esquecer, senão houvesse por ele o carinho ímpar de gente como José Marques Pereira, Danilo Barreiros, Graciete Batalha e acima de todos Adé dos Santos Ferreira que, lutando contra todas as intempéries, repuseram o chão por onde o nosso “vergonhoso” dialecto pudesse dar os seus passos com um mínimo de dignidade.

Se ao patuá não se reservava um lugar de eleição, nós Macaenses também não o poupámos. Não vale a pena culparmos o passado, pois temos imensas “culpas no cartório”, sobretudo em termos acelerado o processo da sua erosão. Perdemos muito à custa dos nossos complexos. Tratamos tão mal das nossas coisas.

Abraçar o patuá fazendo dele uma causa, é nobre. Mas, tal como todas coisas nobres, nada é pera doce. Há sempre aquela voz crítica por trás, que nos diz quão errados nós estamos, mas que se cala logo que procuramos saber da causa do erro.

Quantas vezes Adé não teria suportado a chacota de quem se achava mais sabedor, mas que se recusava a compartilhar a sabedoria dos seus avós? Quantas vezes não teria o mesmo ouvido comentários gratuitos de que o seu patuá não era o genuíno, sem depois se saber de que genuinidade se tratava? Quantas vezes não teria sido apelidado efectivamente de aldrabão, só porque sentia a necessidade de macaizar palavras novas, enriquecendo e recriando o parco vocabulário da língu maquista? Tratamos realmente tão mal das nossas coisas...!

Quanto a mim, pouco me importa se o patuá que escrevo está ou não provido de certificado de origem. Não porque não me preocupe o rigor do seu estudo. Não que sinta indiferença pela verdade. Sou um eterno aprendiz e provavelmente nunca chegarei a mestre. Todavia, o que para mim interessa é o fazer já, é o pôr tudo a terreno até que me convençam do meu erro. Sim, estou ostensivamente numa de desafiar, para que me ensinem, para que apontem o dedo, indicando o caminho certo para me navegar. Mais uma vez posso estar enganado, mas talvez assim colhe melhores reultados. É que cansados estou eu e todos nós em esperar pelo “Big Brother”, em jeito semelhante ao dos judeus relativamente ao seu Messias.

Nunca se ouviu falar tanto na palavra “património”, como nos dias de hoje. Antigamente ela aparecia normalmente nas placas afixadas em edifícios designados do domínio público. Falava-se de “Património de Estado”. Mas nos tempos modernos, o património já é “cultural”, é “mundial”, é “tangível” e depois “intangível”. Sejam que mais atributos forem, seja qual for a forma que o Patuá nos tange, ele é o nosso património. É ele que nos diz quem nós somos. Negá-lo é apagar um passado, uma memória e uma História.

Sâm assi-ia!
(Publicado no JTM a 18/07/2008)