Friday, June 8, 2012

SOBRE NÓS


Recentemente li um artigo de opinião num diário local sobre o que seja “Macaense”. Embora em alguns aspectos não concordasse com ela, gostei do que li porque vinha a despertar algo que anda a fervilhar na alma de muitos de nós. Algo de mais profundo, algo existencial.

O que está  em causa não é tanto o tom de certo protesto que o mesmo artigo pareceu imprimir, mas sim o âmago que o mesmo tocava e que tanto respeita a todos nós Macaenses.

Era a propósito do II Encontro dos Jovens Macaenses realizado no passado Abril, o qual congregou alguns jovens locais e representantes juvenis das Casas de Macau da Diáspora. Foi um evento bem comentado, em todos os sentidos, sobre o qual opiniões mais díspares foram expressas, em conversas de café e tertúlias, quer no mundo real, quer no virtual.

Para já, apoio o espírito dos Encontros. É certo que nem sempre são organizados  na forma do agrado de todos – como se tal fosse possivel - , todavia aplaudo a iniciativa, pois para além da festa que os eventos semelhantes implicam, há um lado simbólico a ter em conta: Macau é a referência do Macaense e o retorno deste reforça os laços de pertença, a ideia de Identidade e a Memória colectiva.

No caso dos jovens, conhecer Macau como berço da sua cultura tem todo o significado.

Mas, volvendo-me ao II Encontro, um dos aspectos que mais atenção causou foi que os jovens oriundos da Diáspora, não nasceram cá e,  com a excepção dos vindos de Portugal e do Brasil, pouco ou nada entendem da língua portuguesa.

A circunstância referida não me choca, pois como se podia esperar de alguém que tenha passado toda a sua vida fora do mundo lusófono pudesse fluir minimamente na língua de Camões? Contudo, isso trouxe como consequência imediata, a discussão sobre se estaríamos perante Macaenses ou não, e em caso positivo que Macaenses eles podiam ser, se é que o conceito comporta gradações.

Esta questão - falsa ou verdadeira, incómoda ou não em face de muitas atingíveis sensibilidades – desperta algo que desde há muito se encontra entre nós como se “caso não resolvido” se tratasse : quem somos nós.
Esta necessidade instintiva de encontrar respostas, também se faz sentir na Internet, graças às redes sociais, onde a troca de opiniões é aberta e pública, coisa que não se assistia no seio da Comunidade até bem recentemente. Como exemplo, quem tiver a benção dos seus administradores para vaguear pelo grupo da Facebook “Conversa Entre a Malta”, pode assistir a vivos debates de ideias sobre quaisquer acontecimentos do nosso burgo, desde a anedota do Joãozinho até à última asneira do autocarro verde.
Ora, entre um desses acesos debates figura a “questão macaense” constantemente à baila, como se tratasse de um inconformado espírito errante, que assombra qualquer projecto que se diz chapado do Macaense.

Falar de nós ou sobre nós não é coisa que acontece ao de leve na Comunidade. Não nego, como é óbvio, a importância de meritórios trabalhos de índole sociológica e antropológica que foram produzidos sobre o Macaense, em que este é estudado sob um prisma estático, como que dissecado com minúcia para se apurarem as suas características mais “típicas”. Refiro-me sim a uma análise numa perspectiva dinâmica sobre esse indivíduo que vemos todos os dias, no serviço, no café, na rua, na boite, no restaurante, na Facebook, a quem chamamos da “Malta”. Quem ele é, como e porque eu me ligo a ele. Onde ele se situa e para onde ele vai, sobretudo nesta Macau tão cheia de modernidade mas tão já empobrecida no que toca ao que é tipicamente seu.

Falar de nós entre nós é assunto que curiosamente se evita. Talvez sejam as susceptibilidades que não se querem ferir, as desavenças mal saradas do passado que ameaçariam reacender-se, as desconfianças em relação ao seu proximo e as retaliações que se temem. Enfim, verdades ou falácias que muitas vezes preferimos obviar a bem da harmonia entre todos, numa imaginária paz comunitária. Afinal, somos poucos e conhecemo-nos demasiadamente bem.

Não obstante, no íntimo de cada um, todos sentem o incómodo do silêncio sobre coisas que nos dizem respeito. Todos falam da necessidade de haver união,  mas como fazê-lo sem ao menos olharmos com olhos de ver o que nos pode unir? Quem somos nós, o que nos é comum, o que nos liga no passado e que se mantém no nosso presente? Por que rumos a trilhar com essa apregoada união?

E já que estivémos a falar dos jovens e da nova geração de Macaenses, os supostos continuadores da Comunidade, o que irão herdar se a actual geração não discute o que deve ser discutido?

Não quero ser alarmista, nem acredito na sina apocalíptica de 2012, mas “o que é ser-se Macaense” deve merecer uma reflexão colectiva por ser fundamental para a nossa sobrevivência enquanto Comunidade. É verdade que muitos povos sobreviveram sem um debate de questões da natureza que acabo de referir. Mas também é verdade que assim aconteceu porque o contexto social ou político em que os mesmos povos se inseriram, exigiam uma forte coesão como condição sine qua non da sua exisência.

Em Macau, ao invés, estamos bem instalados. O Macaense graças à língua que domina, está à vontade na sua terra, tem o seu ganha-pão, aproxima-se das gentes aqui residentes, com quem se relaciona e se casa. O Macaense está em casa. Por isso mesmo se deixa diluir e absorver facilmente. E num cenário menos bom, até se perde.

Daí que faça todo o sentido esta atitude de olharmos para nós proprios para ao menos sabermos o estado actual da nossa situação. Já não bastam declarações públicas vertidas na imprensa sobre a Comunidade que muitos de nós fizémos. A proposta agora é falar sobre nós, entre nós.

Já me perguntaram que objectivos pretenderia alcançar. A resposta é simples: se a Comunidade reivindica afirmação, vai ter que ter uma noção o que ela é, quais os seus contornos, com o que pode contar no futuro. E naturalmente não são outros, senão nós, quem isso ditará.

Mas chegar-se-ia a alguma conclusão? Decerto algumas. Todavia, admitiria  ficarmos com as mesmas dúvidas com que iniciámos. Isto não me preocupa,  pois não temo  a falta de resposta. O que me aflige é a apatia. 

Sâm assi-ia!

(Publicada a versão mais compacta no Jornal Ponto Final, dia 07/06/2012)