Friday, June 20, 2008

NÔS-SA CULTURA - I



Há dias, numa conversa interessante que tive com uma querida amiga minha, argumentava ela que se quisesse mostrar a qualquer visitante o que a Comunidade pode oferecer, apenas poderia contar com duas coisas: a culinária macaense e o patuá. “Que mais temos nós? Que mais?” bradava a minha simpática conterrânea, em tom de inequívoca frustração e, se calhar, de algum embaraço pelo panorama cultural aparentemente parco que a “malta” pode efectivamente mostrar a quem esteja minimamente interessado por essas coisas das gentes de Macau.

Há quem entre nós seja mais contundente: “Não somos, nem carne, nem peixe. Quando muito, mais “carneixe” ou mais “peixarne”ou uma mistela de outro tipo. Para quê falar de nós próprios? Uma pura perda de tempo, é o que é!”.

Embora não comungue este pessimismo, chego a entender o desalento. De facto, era bom que tivessemos uma dança típica, que tivéssemos folclore macaense, que os nossos bandolineiros, resistindo aos ventos do Rock’n’Roll, House e Hip Hop, formassem uma nova geração de músicos com uma sonoridade que possamos chamar “nossa”. É um facto que as nossas mulheres já abandonaram a saraça e o dó faz mais de cem anos, e não existem mais assaltos de Carnaval. A casa tipicamente macaense, para além do crucifixo ou da figura de Nossa Senhora, está apetrechada de objectos e utensílios made in China de marca japonesa, que nada a diferenciam do lar do vizinho chinês ou filipino. Para a nova geração “Macau, Terra Minha” é apenas uma canção “gira” ou “fixe”, e “Macau Sâm assi” esteve no TOP 10 em Macau dos anos 50, do século passado (sic!). As procissões de Nossa Senhora de Fátima e do Senhor dos Passos, durante muito tempo identificado como iniciativa católica macaense, começam a deixar de o ser.

Enfim, uma série de “nãos” que dá uma certa razão a quem seja menos optimista quanto à nossa existência.

Contudo, sem menosprezo para com as legítimas susceptibilidades em causa, se tudo isso é verdade, não é isso que verdadeiramente me preocupa. Será que precisamos realmente dessas coisas típicas para sermos minimamente típicos? Será que tenhamos que ser ou carne ou peixe, para sermos gente, para sermos Comunidade? A resposta que se impõe é um rotundo não. Quem conhece a história de Macau e a senda dos Macaenses sabe que sempre estivemos na “corda bamba”. E não poucas vezes tivemos que sacrificar o que é nosso para satisfazer os interesses de dois lados, ou para sobrevivermos nos países que nos acolheram. Foi sempre este o nosso bilhete para o combóio.

Caminhámos tanto, percorremos séculos, adaptámo-nos a tantos governantes e a tantos estilos de vida, quer na bonança, quer nos dias mais negros, vivemos bem e andámos não poucas vezes com o coração nas mãos. Não temos muito, mas temos História.

Não é esse, portanto, o plano das nossas preocupações. A nossa verdadeira inquietação é algo bem pior: o modo como nós tratamos de nós próprios e das nossas coisas. Aí sim, há motivos de sobeja para nos preocuparmos seriamente. É que, somos tão mauzinhos connosco mesmos...!

Vejamos na culinária.
Todos nós lamentamos que muitas receitas de pratos típicos deixaram de existir. Queixamo-nos de que hoje em dia comemos apenas corruptelas ou versões descaradas (aldrabadas) daquilo que foi o manjar dos deuses que “só a avó Béba, ou títi Marichai sabiam preparar. Pois, aquilo é que era o genuíno!”

Todos dias criticamos e chamamos inimagináveis nomes a quem ouse apresentar um prato antigo e tipicamente macaense, de que nossos familiares ou alguém conhecido, se notabilizaram a confeccionar. “Chupa-ovo, nem sabe o que é cozinhar!” ou então desdenhosa e paternalmente, “Né mau, jeito nâm falta! Mas... - eis agora o remate demolidor - ... nâm sabe, nem há-de saber o segredo do sabor!”.

Quando alguém se enche de coragem e resolve dar lições de culinária macaense – cruzes! – seria caso para por mãos à cabeça, para melhor proteger da chuva de escárnio e de maldizer contra essa tamanha audácia.

Contudo, ao perguntarmos humildemente “a quem de direito” sobre a maneira correcta de o fazer, a conversa ficaria irremediavelmente por aí, como se de matéria lesa-majestade se tratasse. Aí imperaria o tabú com o know-how guardado a sete chaves. Mesmo que haja gente mais generosa que se prontificasse a explicar, ficaríamos sempre com a impressão de que apenas nos deram sessenta por cento da informação.

Pode-se facilmente imaginar quantas ricas receitas não foram deste modo arredadas do conhecimento geral, conservadas em cadernos ou pergaminhos perdidos em gavetas, arcas e baús, para depois terem o lúgubre destino de se acabarem no papo da traça e da formiga branca. Quantas outras não acompanharam os seus donos para as respectivas sepulturas, em jeito semelhante ao das jóias e objectos preciosos dos faraós? “Bagí di Cecília, Mamún di Dóna Celeste, Saransurave di Chico-Mano... qui sabroso, só di pensâ, boca ta corê babo iâ! Cuza? Como fazê?? Sâm priguntâ co S. Miguel!” (O Bagí da Cecília, o Mamún da Dona Celeste, que delícia. Basta pensar nisso enche-me a boca a saliva. O quê? Como fazer? Procure saber junto do [Cemitério de] S. Miguel!).

Quantas mais não desaparecerão, com o correr dos tempos? E o esquecimento a que tantas outras são votadas, pelo seu não uso, ou pela obstinada recusa dos seus guardiões em compartilhá-las? Depois admiramos revoltados por existirem estabelecimentos ditos de cozinha tipicamente macaense, onde não se vislumbra nada que fosse próximo da nossa comida.

Esta atitude de “eu sei mais que tu, mas não te digo nada” é compreensível num mundo de competição. Mas neste contexto, só causa em mim uma profunda tristeza. Tristeza porque encarna a visão de um perecimento inglório para uma cultura multissecular.

Por isso, deposito esperança na recém-criada Confraria da Gastronomia Macaense. Com os propósitos pelos quais foi criada, ela tem uma responsabilidade de peso na preservação de um dos importantes pilares da cultura macaense. Não que ela seja ou venha a ser o supra-sumo sobre o que é o manjar macaense, nem espero que ela faça ressuscitar ao terceiro dia o Margoso-lorcha de Chico-Meno, ou a Cánji di Fula Papaia do saudoso António Assumpção. Espero, sim, um redobrado esforço para que se dê um novo alento, encorajando e estimulando iniciativas de redescoberta – senão mesmo, de reinvenção - da gastronomia macaense. O seu sucesso não dependerá tanto de se publicar mais um manual do Mínchi ou de se construir o projectado Museu da Gastronomia Macaense, mas sim da visão de abertura para todas as soluções de enriquecimento da nossa culinária, sem preconceitos nem complexos.

O mesmo gesto, embora numa dimensão diferente, e dentro das possibilidades de cada uma, espero também da Associação dos Macaenses e da APOMAC, dois importantes núcleos aglutinadores da Comunidade, bem como de outras instituições e organismos que se prezam pela defesa da identidade macaense, despertando a consciência colectiva de que ou compartilhamos sabedoria, ou estamos ... ferado! (lixados!)

Com o patuá a história é outra, mas a moral é a mesma. Deixemos isso para o próximo número.

Sâm assi-ia!

(Publicado no JTM no dia 19-06-2008)